A passada. Colocar um pé após o outro, cria-se um ritmo de passos que nos levam a algum lugar.
Hoje conto como dois pés, um de nome esquerdo e outro direito, iniciaram uma caminhada.
Como em todos os inícios, sentiam-se algo ansiosos com o começo, com o primeiro passo.
- Preparado? – perguntava o esquerdo, meio trémulo, segurando uma perna que ainda tremia mais.
- Claro. Viemos para isto e agora íamos desistir. – firme o direito não hesitava nas palavras.
E começaram. O chão era vidrado pela chuva que havia coberto toda a cidade. Mas não houve esmorecimento pelo sucedido. A cada passo, ambos sentiam que estavam numa aventura sem igual. Mas não foi apenas isso que sentiram. Havia um íman, uma espécie de força inexplicável que os puxava. Tornava-se num impulso emotivo que fazia o esquerdo estender-se de forma mais rápida, motivando o direito a acompanhá-lo.
A chuva foi dando lugar a um sol radioso, que rasgava as nuvens, e enquanto mais se andava, mais o universo parecia querer iluminar o caminho.
Uma ponte. Dois lugares. Duas margens. Um rio. Pontes ligam pessoas, culturas, países. Ligam tradições, caminhos. Os pés atravessaram-na contentes de sentirem o ranger do metal, de verem a corrente que leva as partículas de água, e o verde que envolve toda o rio.
Uma vila. Lugar onde as casas se juntam, formando um desenho, uma forma. Casas que abrigam pessoas, que escondem histórias, que dividem espaços. Ao longo de toda a vila, quer o esquerdo como o direito estavam deliciados com os desejos de “bom caminho” de todos os que se cruzavam com o seu corpo. E assim se seguia o bom caminho.
O caminho atravessou ruas e vielas, pequenas esquinas, passeios e empedrados. Até se abeirar da terra, dividida entre a humidade das gotículas de chuva e do seco do sol que cada vez mais era forte e presente.
Havia um silencio. Aquele momento em que as palavras não são necessárias, atropelam a visão. Ele entranhava-se nos corações, espalhando uma sensação de paz. Os pés podiam sentir um certo cansaço, mas estavam absortos pela dimensão do que os puxava.
- Sentes? – o esquerdo já não aguentou mais em reservar para si aquela sensação.
- Algo a chamar? É disso que falas?
- Sim.
- Sinto imenso. Não tem voz, mas tem palavras, não tem som, mas escuta-se à distancia, não tem olhos, mas segue-nos em toda a parte.
- É isso. Cada vez que ando, parece que me abraça mais. E menos medo tenho.
- Pode-me doer o corpo, mas cura-me a alma.
E assim continuaram.
Houve paragens. Descansos, água que molhou os lábios, sorrisos que motivaram os músculos, e houve histórias. De cada um. Como pequenos segredos que se contam no recôndito canto da emoção.
E seguia-se caminho. O sol ficava mais fusco, começava a dar ares de querer descansar. Era hora de chegar. Os pés, lavados em suor, queriam parar por uma noite.
Houve risos por entre aqueles que caminhavam, uma lágrima que se deixou cair pela etapa já finda, e um sabor dorido de quem se atreveu a caminhar. Havia pensamentos de duvida, sentimentos de olhar para a frente e pensar no que ainda falta. Mas, no aconchego de uma refeição, esquecem-se as dores, as questões de voltar atrás, e sente-se que ali é o nosso lugar, no caminho, caminhando.
Depois o banho. A água a correr, retirando a tensão, e os pés a refrescarem-se. A cama. A sala repleta de caminhantes. Os cheiros. Odores que se misturavam em camaratas. E os sons. Que pareciam não deixar descansar o esquerdo e o direito. Mas o conforto de um colchão, de uns chinelos abertos e de um firme cansaço, deixaram-nos adormecer, mesmo que pouco, mas o suficiente.
E na noite ficou o chamamento. A voz sem palavras, o íman que puxava. Amanhã eles sabiam que tinham de continuar.