
o relógio ainda não acordou.
mantém-se num empate de tempo, adormecido pela contagem interminável das horas.
talvez espere também, como eu, pela chegada daquele instante em que somos interpretados como sugestões da historia.
é o que este corpo aguarda. fechado no sofá, coberto pela manta que retira o frio e com a eterna chávena de chá na cabeceira, ele fica de frente à porta, um pouco entreaberta.
ela surge sempre de branco, vem de água em riste, enfia uns comprimidos coloridos, sorri forçosamente e depois mexe e remexe em maquinas, anotando dados e despertando sons. após…o após é sempre a saída.
e fica este corpo mais uma vez, só com o relógio. ele não se afronta com a minha presença.
fica enternecido no seu canto. não mexe os ponteiros em demasia. já deixa um certo coma tomar conta do seu mecanismo. sente as rodagens gastas, rolamentos desabituados.
e eu, no meio de pensamentos. perdidos. datas passadas. manhãs para trabalhar. noites com o pesadelo da duvida, e deitado sem comer, ou um beijo sem dar. e tudo ficou lá atrás. ficou onde fica o pó. depois vieram as urinas difíceis, as vezes em que me perdia as desculpas. vieram os momentos ausentes, as dificuldades da memória, os funerais dos amigos e familiares, e mais poços de lembrança. tudo foi ficando sem tinta, os pincéis deixaram de ter flexibilidade. ficou tudo rijo, a pele, os lábios que não falavam e os dedos que não mexiam.
a rigidez do corpo é uma surdez do tempo. ele não grita, não chora nem clama. apenas padece, todos os dias mais um pouco. e não pede licença. apenas o faz.
ela volta. e revolta mais uns comprimidos. levanta-me a cabeça e empurra a água. sinto que algo se espalha por dentro. olha-me os olhos. vê bem fundo. as minhas retinas ficam impávidas.
parece dizer algo, que não ouço. apenas vejo-lhe uma boca em mexidas.
se o relógio viajasse, eu iria com ele. lá atrás, onde ficou o pensamento. e convidava-a. ia mostrar-lhe uma carta. não uma qualquer. a ultima. aquela onde ficou escrito o que viria. o que iria chegar onde apenas chega o que deve.
tenho ainda em memória. lá no fundo, do poço. vou buscá-la. aqui está ela. leio-a. mas ela teima em não me escutar. continua remexendo os lábios, andando em círculos, como que desenhando rodas e corrupios de rodas.
cá vai a ultima,
a data não interessa, um dia alguém a vai ler.
escrevo-a para que saibam que um dia existi. e para que ela, a que tiver o afrontamento esplendoroso de a ler, possa perceber que certo tempo, algures lá atrás, onde o pó apaga a lembrança, alguém a amou.
sim. amei-te. tu que a lês, estas palavras corridas, sem tempo para te apanharem, sem tempo para me tocares. mas amei-te.
é duro perceber que se ama alguém que não se vê. mas o que é isso de amar afinal?
pergunta retórica sem resposta digna de ruborizar o caule das faces.
são simples definições que a embelezam. amar é só sentir o que não se sente pelos dias que só se anda. amar é andar e saber que se anda. amar é como lavar a cara pela água que cai na bacia e saber que ela nos toca a pele de arrepio. não é apenas lava-la e depois achar que só se lavou. amar é pegar no casaco e cobrir o corpo, dando-lhe o aconchego. não pode ser só vesti-lo e achar que ele apenas serve para servir mais uma imagem no espelho.
amar é ter-te. aqui, nestes braços que imaginas como compridos, capazes de te atirar ao ar e apanhar de novo. e senti-los rodarem sobre ti, e amarrarem-te junto a mim. amar é olhar-te, assim como quem olha quem nunca viu, de espanto, lembrado nos lábios que um dia beijou. e guardar esse beijo. numa gaveta escondida atrás dos armários, onde ficam os segredos, onde ficam as historias que só contamos ao nosso ego. sussurra o meu nome entre os demais, para que eles saibam que é de amor que falas. não abordas qualquer identidade, mas sim daquele que te levou na esperança e te trouxe com esperanças. que te deu luz e na luz trouxeste parte de quem te deu.
amar é tocar-te, no fundo das questões que nunca se discutiram, por vergonhas ou meras entre linhas.
amar é tu escreveres sem palavras, manteres a página branca, mas saberes que ali está tudo dito. imaginem-o. é só isso. o amor não se vê. nem se pode. senão não era amor. sente-se. mas sente-se porque ele é fugido, escapa por entre os dedos, as oportunidades e vai de longe para bem longe. não se pode andar distraído. ele passa, assobia e logo deixa rasto. se não atenta, fica-se sem lastro, sozinho nas membranas dos porquês. porquê é que me acontece a mim? porquê ninguém me ama? porquê não encontro aquele que imagino? porquê quem amo não me vê?
porque não escutamos o seu falar. aquela conversa sem frases, aqueles dizeres sem diálogos. porque ele não se pode escutar. só ouvi-lo bater, pum pum pum pum, como uma locomotiva que se aproxima, a todo o gás, saltitando com pulos frenéticos e andar poético. ele vem sem pudores, arrebatando tudo por onde passa, e as pernas tremem, os braços esfolam-se por agarrar, mas as mãos soam, e a cabeça fica na solitária ideia de um só pensar. o de quem se agora ama. acabado de chegar.
será assim que te vais sentir. e eu também quando te vir. eu sei quem és. não te posso descrever em todo. mas digo-te que já amo os teus cabelos, parecem ondas do mar, voando no som que o vento traz. os olhos são como esmeraldas. até na noite eles te brilham na cara. e os lábios saem-te do corpo, apetecíveis pedaços que beijam os meus. terás mãos de princesa, e corpo de mulher vivida, sem pecados.
serei como um escravo desse teu amor. um daqueles que se entrega por completo, na riqueza escrava de te amar, sem mendigar um pedaço que seja de ti. apenas saber que estás ali.
serei submisso ao teu tempo. ele será o meu. teremos apenas um tempo. e sem que ele possa se perder, e trazer um contratempo qualquer.
serei a tua entranha de cama. a que te aquece, que se embrulha na pele que te esposa.
serei a musica que ouves pela madrugada, dizendo-te sempre que és a mais bela aurora e a única penumbra que refresca o desejo matinal de te enriquecer.
serei o galo que te acorda, o andor que declama o teu nome e o doce anjo que adorna o teu ventre.
e quando leres estas folhas, não as rasgues. deixa-as ir com a brisa. levaram a saudade. a lembrança. aquela que me foi levada pelo relógio que conta as horas do meu caminho.
quando leres esta carta estarei perdido sem saber o teu nome. perdi até o meu. o de todos. só terei o relógio. em contagem. dia e noite após dia e noite. nada mais.
estarei numa cadeira qualquer. algures enfiado num quarto. não me perguntes onde, porque já não tenho lembranças de nada. perdi tudo. não tenho nada.
dirão que é da idade, mas nem essa sei. ou que o meu cérebro padeceu dela. mas nem ele saberá também.
por isso, lê esta carta e deixa-me amar-te, no sonho de um dia ter-te conhecido. quando ainda tinha a hipótese de o fazer. porque perdemos sempre o que de melhor a vida nos dá, só porque pensamos que amanhã ela nos dará ainda melhor. mas depois o melhor nunca chegou, porque ele já ficou lá atrás, onde o pó tudo apagou e esqueceu.
não assino, porque já perdi a esperança do meu nome.
e o relógio parece não ter acordado ainda. vou manter-me a dormir. poderá ser que um dia chegue o fim do sono e possa finalmente apenas repousar na memória dela, junto ao seu amor.