Dia 6.
A noite trouxe um silêncio absoluto. Por vezes pensamos que este som , o silencio absoluto, é uma utopia, mas não, estava aqui e agora. Como o tempo. Nas sociedades modernas, perdemos o seu controle, a sua dimensão, mas neste lugar, algures perdidos entre o amasso das montanhas, somos confrontados com a existência real do tempo, que passa numa toada serena e descomprometida com a essência dos nossos pensamentos. Aqui vive-se, sente-se que somos parte de algo, não estamos perdidos na selva humana. Com a manhã veio o cheiro. Aquele cheiro que imaginamos existir. Aquele odor tão suave mas penetrante, que nos refresca o corpo com a sensação de levitação da nossa alma. O pequeno almoço, agora servido livre das paredes da tenda, olhando o infinito, o horizonte que se perdia no ínfimo do nosso olhar.
Os primeiros passos, sempre a descer foram feitos debaixo de uma certa ansiedade do meu ser. Continuava nesta demanda inesperada de auto-controle, qual jaula que despoletou dentro de mim, talvez aprisionada há muito e a necessitar de ser exorcizada. Encontramos um casal de ingleses, perdidos na orientação e na água. Aqui todos somos filhos da montanha, da mesma mãe. Disponibilizamos água, e umas pastilhas para que pudessem reabastecer assim que fosse possível, mas sempre haveria a Fanta aos 3600m. Depois de nos confrontarmos com o cascalho do terreno, as nossas passadas estavam cada vez mais lentas, cuidadas, espontaneamente pensadas, para podermos observar o quanto belo era o envolvente. Uma cascata nasceu nos nossos olhos. A sua queda majestosa, mas ao mesmo tempo, alheada de nós, era uma bela foto, um lugar onde o paraíso começava a desenhar-se, como aquele onde as arvores começavam a receber-nos com as suas cores, os seus odores. Os abrigos dos pastores, onde pudemos abraçar uma cabrita recém-nascida. A aldeia começava a aproximar-se. Sentíamos o seu batimento. Tizi Ossean. As pessoas. As crianças. A menina pequena, com o ranho no nariz, o olhar espantado para alguém que media mais do dobro dela, o pensamento perdido, a corrida rápida e o sorriso sincero. Sim, aqui o sorriso é sincero. Não se sente a hipocrisia dos dias. Não sentimos o cinismo das cidades. Aqui sente-se a Vida. os miúdos que brincam com uma pequena bola de ténis, num campo improvisado, qual estádio onde a multidão vibra com as jogadas e as risadas dos pequenos, que felizes por serem ignorantes do mundo exterior, divertem-se na pureza do momento. As pessoas passavam e cumprimentavam. Dizendo um olá. Acenando um cumprimento verdadeiro. Os sorrisos. Não me canso com eles, pois ainda os tenho na mente, e por mais que queira, não consigo eu próprio imitá-los. Os nossos tem tudo mas não fazem nada, eles não tinham nada e faziam tudo.
Mas com a aldeia veio o rio, a água, esse bem tão precioso e tão esquecido. O banho, nas frias águas e gélidas, mas tão refrescantes quanto libertadoras. Sinto mesmo o exorcismo dos meus ignóbeis pesadelos. Tenho o corpo cheio de vida, de esperanças, de vitalidade. Lavamos as roupas como a musica da Beatriz Costa, e fomos brindados com alguns aldeões Sábios que partilharam connosco a sua Sábia visão da vida. O jardineiro das árvores foi absolutamente majestoso, nas nossas vidas temos de saber regar as árvores do nosso percurso.
Veio mais uma noite e veio uma conversa incrível com o nosso guia. Aqui deixo hoje uma foto dele, quero que a observem, e por momentos fechem os olhos e imaginem um Homem Verdadeiramente Livre, e vão ver o Ahemed. Falou-nos da vida, do passado que já não interessa, apenas é uma lição. Do futuro que virá, mas não é o primordial. Primordial é o presente, que vai passando e nós o vamos perdendo, perdidos entre o que vivemos e o que vamos viver. Falou-nos do amor pela fé, naquilo que é o acreditar de um ser, que não quer saber o que os outros acreditam, apenas sabe que o melhor para si é aquela crença. No amor pelos outros e os outros por nós, quando tomamos uma decisão e se esta nos provoca dor, essa dor irradia-se a todos os que amamos, logo devemos ter atenção, porque somos responsáveis pelo amor que os outros sentem por nós.
E depois veio o sono. E dormimos. Descansados. Libertos.
Dia 7.
Veio a manhã. O ultimo dia a caminhar. Não vou perder-me em ultimas descrições. Apenas vos conto que encontramos uma criança que precisava de cuidados médicos. Deixamos medicamento. Mas o seu olhar, o seu corpo franzino, a sua pele encrostada, está-me na memoria. Fiquei ali, naquela aldeia. E ainda lá estou, nas coisas óptimas, mas nas menos boas também. Mas estou na montanha, estou nas pedras, na terra, nos corações das pessoas e dos animais que nos receberam. Estou nas árvores e na água. Estou nos cheiros e no silencio. Estou e fiquei lá. Mesmo no descanso do final, fiquei onde pertenço, perdido nas memorias serenas desta caminhada que representou uma magnifica experiencia, mas também um momento de grande esplendor, sim, porque o esplendor da vida é a todo o momento.
Vivam, mas deixem também viver.
Até breve.
Obrigado Atlas, Toubkal , Tizi Ossean, Ahemed e todos os habitantes das aldeias e cidades, pássaros, arvores, animais, caminhantes, mulas, crianças, pedras e ribeiros, a todos o Meu mais Sincero Obrigado por me terem recebido na Vossa Casa.
Fim
E Aqui descansamos, não interessando o cansaço do corpo.
Até à próxima.