O volante queima. Arde na pele, como que descascando-a pelas palmas das mãos. Sente uma espécie de formigueiro subir-lhe pelos braços, mas não descola daquele volante. Uma sensação meio suicida paira no seu pensamento, apoderando-se de uma espécie de vontade de destruição.
“É stress” dizia-lhe um colega. Muitos objectivos ao mesmo tempo. Um corpo que treme, um aperto no peito, que se fecha cada vez mais, que dói e corrói. O externo encolhe-se de tanta revolta, fúria que explode. Quer ter o poder de armar o carro como tiro certeiro a qualquer coisa. Assim pode deitar fora, expelir esse sofrer gratuito.
Hoje teve uma discussão ao acordar. A mulher não percebe a sua lástima de vida. Os filhos gritam tanto que o cérebro afunda-se num sino que badala a tamanha força, destruindo as células. Não pensa. Discute quando chega ao trabalho. Mais aperto no peito. Suores nas mãos, desequilíbrio, mas tem de se equilibrar. Julga-se. Volta a julgar os outros. Julga tudo. Os dias, as noites, os sentimentos, o trabalho, o café que não está como deseja. O chefe é um pulha, é seu pensamento. A mente ferve como uma caldeira desenfreada.
Conduz com a loucura no olhar. E fica vermelho.
Fodas. Fodas. Fodas. Puta que pariu estes semáforos. Vermelho. Vermelho. Fodas.
Tantas palavras que cerra os dentes por diante. Fica quase no desmaio. Carros que fumegam cheiros insuportáveis, pessoas tristes, gritos no carro ao lado, música infernal no da frente.
Meu merdas, desliga essa merda de música, efemeramente a ideia de dizer alguma coisa atravessa-lhe a cabeça. Mas não diz. Apenas contém, ainda contém mais e mais. Panela pronta a rebentar. Liga o rádio, sai a noticia de mais problemas. Mortes, desgraças, mundo a acabar. Latejo que não passa.
Fodas, quando é que fica verde? Vamos, vamos. Eu não posso desligar. Não posso perder o controle.
Os outros. Os seus olhos. Os seus julgamentos. Sente-os todos no seu ser. Olha em volta e todos o observam, o veem, mesmo que não estejam ali. Dedos apontados, palavras escritas no silencio, ditas na escuridão. Existes logo tens de ser julgado.
Não!!!!!!
Vermelho ainda. Ao fundo um rapaz brinca aos circos. Malabaristas. Sorri. Nem se recorda da ultima vez que viu um sorriso. Nem se lembra de olhar o sol, que parece aparecer por trás dos pedaços de madeira que o rapaz atira ao ar e agarra com leveza. É como se tudo estivesse organizado na vida daquele que veste roupas simples, sem gravatas apertadas, sôfregos de fatos justos, nem sapatos de verniz. Tem umas sandálias, calças de cores. E sorri.
Porra, como é que ele consegue sorrir?
E quando termina vem na sua direcção.
Não posso falar com ele. Fecha a janela. Uma peçonha aproxima-se, um vírus letal que o pode transformar num ser sorridente. Tem de se afastar. Todos se fecham. Ficam de olhares em riste no semáforo. O rapaz não para de sorrir. E agradece. Continua até ao seu carro. Bate-lhe no vidro. Não quer olhar. Não quer, não quer. Treme ainda mais. Soa ainda mais. Perde ainda mais.
Desculpe, eu não mordo.
E numa vesga de olhar, vê aquele sorriso. Inveja que entra e se apodera. Vontade de sorrir também. Impulso que leva o dedo ao controle do vidro. Este abre-se. E na outra mão uma moeda. Estica-se e deita-a no chapéu. Os lábios do rapaz rasgaram-se ainda mais.
Grato.
Que palavra. Que som. E sorri tanto que lhe rebenta a boca. Não consegue parar de rir. E os dois riem-se como doidos. Como crianças de chupa na mão, como amantes de amor no peito, como amigos de paixão nas mãos.
Apitos de outros carros ecoam pela estrada, mas não sai dali. Ri tanto que a barriga já lhe dói.
Vê, não dói nada.
E não.
Verde. Seguir em frente. No espelho fica um rapaz a acenar-lhe. É livre.
Liberdade. Sorriso. De novo o sol. Brilho.
Afinal...