Caminhava de pés leves pela beira da estrada. Era curto, o passeio por onde, passo ante outro passo, trilhava um andar ligeiro. De preto vestido, cabelos apanhados por um gancho e sapatos rasos, cinzas meio confundidos com o pó da terra. Na mão direita um flor e um pequeno pedaço de papel azul. Mantinha o olhar pelo chão, sem mínimos desvios para os carros que passavam ou para os gatos que se atravessavam. Malandros que sarapintavam a estrada com malhados e cores distribuídas entre preto, branco e cinza rato. Pareciam estar perdidos num jogo de foge e esconde, que rasavam as rodas dos que dobravam o asfalto com velocidade, e as pernas dela, sem que se assustassem. Eu seguia-a pelo correr do tempo. Corria pelo tempo que marcava a manhã soalheira, de cheiros a erva ainda sonâmbula e eucaliptos banhados pela humidade madrugadora. Mantive o ritmo da música que penetrava os meus sentidos. Mas atento à curiosidade da minha sensação. Uma flor na mão, perdida num caminho sem destino. Uma mulher de preto, saída de uma casa sem portão. Pensamentos ao largo, corpo chamado a correr no suor, e os olhos postos naquela que, no instante, de mais umas passadas, dobrou a entrada do cemitério. Parei, junto da árvore que me escondia da vista furtiva. Esgueirei-me junto ao muro, aproveitando o silêncio entrei. Perde-se a ideia dos mortos quando vimos tantas cruzes levantadas, erguidas num lugar onde apenas repousam as pedras e a terra que virou pó. Ao fundo, o preto destacava-se. Limpava com as mãos o mármore, e acarinhava de seguida uma foto. Acabamos sempre assim, presos nas fotos saudosas de alguém que nos chora. Ficamos papel, simples imagens de um tempo fechado. Saiu de leve, como entrou. Limpava lágrimas, de lenço em riste. Fiquei-me pelas costas de uma pequena capela. E juntei-me à foto. Fica sempre escrito a eterna saudade, como se eterno fosse um sentimento que também parte, um dia pela manhã ou pela tarde. Tinha nome, Manuel, viveu muito pelos anos, e ar simpático, assim era pela foto. A flor ficou, no meio,do mármore preto. Pétalas amarelas, cor de sol, e um caule tão,verde quanto fresco. O papel azul, escrito com mãos de amor, parecia guardá-la. Consegui ler, sem que pudesse trespassar tal dor, "Todas as manhãs fazes-me falta. Precisava de ti para o café. Já não estás lá. Já ninguém está lá. Apenas as sombras. Mas não é as sombras que quero amar. És tu. Já não estás lá pela tarde. Só as tuas flores, que regavas. Trouxe-te mais uma, que tinha saudades. Já não estás pela noite. A cama fica fria, mesmo nos dias mais quentes. O colchão já não tem o adorno do teu corpo. Partiste e nem me disseste nada. Foste assim embora, e fiquei ali, naquela casa, todos os dias sozinha. Com as sombras. Mas chegou a carta. Da filha, que me chama, para ir. Eu tenho de ir. Já não posso viver ali, sem ti por perto. Levo as tuas flores, o cheiro do teu perfume, e a roupa na tua mala. Mas levo algo mais de ti. Levo-te no coração. Deixo aqui o teu corpo. Que descanse do que não conseguiu. Levo o teu nome, e as recordações. Vou contá-las à menina, nossa neta. Ela via gostar, tenho certezas. Com amor." Fiquei eu, no silêncio que trazia a aragem. Fechei os olhos e imaginei. Mas não consegui. Não se consegue imaginar ou recriar o amor dos outros. Sai em corrida, virei atrás, e ainda a apanhei. Entrava de novo, pelo jardim das flores amarelas. Tinha a mala à porta, encostada. Colheu as flores, apanhou a mala e olhou porta, como se olhasse o passado. Disse-lhe adeus, eu senti isso, o mundo sentiu essa palavra. Virou-se e um carro parava nesse instante. Saiu um homem prestável. Ajudou-a a entrar. Ele perguntou: É mesmo isto que quer? Sim. Agora já posso dizer olá. Ele está em paz. Vamos.- e o carro arrancou. Fiquei. Sem reacção. Apenas fiquei. Até que as horas ficassem também elas sossegadas. Até que voltasse a lembrar de mim. Consegui regressar. E depois do adeus, ficou o olá...