podes pensar, podes falar, mas tudo o que escrevas tem o poder de ficar.
26 de Maio de 2015

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Caminhava de pés leves pela beira da estrada. Era curto, o passeio por onde, passo ante outro passo, trilhava um andar ligeiro. De preto vestido, cabelos apanhados por um gancho e sapatos rasos, cinzas meio confundidos com o pó da terra. Na mão direita um flor e um pequeno pedaço de papel azul. Mantinha o olhar pelo chão, sem mínimos desvios para os carros que passavam ou para os gatos que se atravessavam. Malandros que sarapintavam a estrada com malhados e cores distribuídas entre preto, branco e cinza rato. Pareciam estar perdidos num jogo de foge e esconde, que rasavam as rodas dos que dobravam o asfalto com velocidade, e as pernas dela, sem que se assustassem. Eu seguia-a pelo correr do tempo. Corria pelo tempo que marcava a manhã soalheira, de cheiros a erva ainda sonâmbula e eucaliptos banhados pela humidade madrugadora. Mantive o ritmo da música que penetrava os meus sentidos. Mas atento à curiosidade da minha sensação. Uma flor na mão, perdida num caminho sem destino. Uma mulher de preto, saída de uma casa sem portão. Pensamentos ao largo, corpo chamado a correr no suor, e os olhos postos naquela que, no instante, de mais umas passadas, dobrou a entrada do cemitério. Parei, junto da árvore que me escondia da vista furtiva. Esgueirei-me junto ao muro, aproveitando o silêncio entrei. Perde-se a ideia dos mortos quando vimos tantas cruzes levantadas, erguidas num lugar onde apenas repousam as pedras e a terra que virou pó. Ao fundo, o preto destacava-se. Limpava com as mãos o mármore, e acarinhava de seguida uma foto. Acabamos sempre assim, presos nas fotos saudosas de alguém que nos chora. Ficamos papel, simples imagens de um tempo fechado. Saiu de leve, como entrou. Limpava lágrimas, de lenço em riste. Fiquei-me pelas costas de uma pequena capela. E juntei-me à foto. Fica sempre escrito a eterna saudade, como se eterno fosse um sentimento que também parte, um dia pela manhã ou pela tarde. Tinha nome, Manuel, viveu muito pelos anos, e ar simpático, assim era pela foto. A flor ficou, no meio,do mármore preto. Pétalas amarelas, cor de sol, e um caule tão,verde quanto fresco. O papel azul, escrito com mãos de amor, parecia guardá-la. Consegui ler, sem que pudesse trespassar tal dor, "Todas as manhãs fazes-me falta. Precisava de ti para o café. Já não estás lá. Já ninguém está lá. Apenas as sombras. Mas não é as sombras que quero amar. És tu. Já não estás lá pela tarde. Só as tuas flores, que regavas. Trouxe-te mais uma, que tinha saudades. Já não estás pela noite. A cama fica fria, mesmo nos dias mais quentes. O colchão já não tem o adorno do teu corpo. Partiste e nem me disseste nada. Foste assim embora, e fiquei ali, naquela casa, todos os dias sozinha. Com as sombras. Mas chegou a carta. Da filha, que me chama, para ir. Eu tenho de ir. Já não posso viver ali, sem ti por perto. Levo as tuas flores, o cheiro do teu perfume, e a roupa na tua mala. Mas levo algo mais de ti. Levo-te no coração. Deixo aqui o teu corpo. Que descanse do que não conseguiu. Levo o teu nome, e as recordações. Vou contá-las à menina, nossa neta. Ela via gostar, tenho certezas. Com amor." Fiquei eu, no silêncio que trazia a aragem. Fechei os olhos e imaginei. Mas não consegui. Não se consegue imaginar ou recriar o amor dos outros. Sai em corrida, virei atrás, e ainda a apanhei. Entrava de novo, pelo jardim das flores amarelas. Tinha a mala à porta, encostada. Colheu as flores, apanhou a mala e olhou porta, como se olhasse o passado. Disse-lhe adeus, eu senti isso, o mundo sentiu essa palavra. Virou-se e um carro parava nesse instante. Saiu um homem prestável. Ajudou-a a entrar. Ele perguntou: É mesmo isto que quer? Sim. Agora já posso dizer olá. Ele está em paz. Vamos.- e o carro arrancou. Fiquei. Sem reacção. Apenas fiquei. Até que as horas ficassem também elas sossegadas. Até que voltasse a lembrar de mim. Consegui regressar. E depois do adeus, ficou o olá...

publicado por opoderdapalavra às 00:06
22 de Maio de 2015

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Vivemos momentos de vaidades gratuitas. Muitos foram os que, nas últimas semanas, se colocaram em bicos de pés, para se agruparem em juízos fáceis, reparando desde logo, a ausência de um sentimento de culpa, face a uma sociedade sem costumes, sem prioridades de valores. Momentos de café, dedos de conversa intermináveis pelo Telemóvel, e muitos, mas mesmo muitos posts no Facebook, à procura de likes e mais likes, às críticas, ao espanto absorto e quase diabólico, à perplexidade do que era noticiado nos jornais, televisões, e mais afins. Falo dos vídeos de violência entre adolescentes, na morte de adolescentes, falo da violência de policias em jogos de futebol, falo de claques que recebem jogadores com picaretas, falo das imagens de um país que se afunda numa mescla de hipocrisia barata, ignorante e pior, inconsciente. Porque é de consciência que falo. A falta dela tornou-se numa fogueira de vaidades, em que o alimento mais próximo é o mal dos outros, é a angústia alheia, é o inferno que mora na casa do vizinho e muitas rezas são feitas para não entrar na minha. Então somos mesmo o país do Big Brother, somos uma mera casa de segredos que teimamos em alimentar, apenas para desviar as atenções de quem realmente somos e o que somos. Entrar dentro de si, ir ao seu fundo, ver as suas feridas, olhá-las, admitir que elas existem, tratá-las e amá-las é algo muito complicado para esta cultura que se perde em falsas teorias de bons costumes. Uma cultura submersa em padrões. Vaidades. São meras vaidades. Nós humanos somos também maus, todos nós. O gene animal não é repartido em duas partes, um grupo fica com o mau e o outro com o bom. O gene animal é ter as duas partes num só indivíduo. Nós temos a dualidade. Freud defendeu isto, e outros tantos também. Mas, numa sociedade contemporânea, que de tal nada tem, prefere apontar o dedo, colocar-se no pedestal da perfeição e atirar pedras e cuspe para aqueles que combatem em pleno circo. O que falha na educação dos adolescentes? O que falha na falta de controle de um polícia perante uma adversidade? O que falha nesta fogueira de vaidades? Para mim falha a viagem. O entrar dentro, o desviar para uma responsabilidade colectiva o que ao individual pertence. As sociedades devem ser construídas de dentro para fora, do indivíduo para o colectivo. Não é uma teoria milagrosa, porque esses apenas existem nas crenças de cada um, mas é o caminho que cumpre um factor essencial: o de descobrir o princípio da nossa existência. Não existimos para parecer, mas sim para Ser. E para Ser temos de descobrir, dentro de nós, o que cada um é de facto. O que é que essa viagem interior pode alterar nos vídeos, nas violências, e em tudo mais? Um princípio altera, o de deixarmos de padronizar a vida. Ela não é justa ou injusta, ela não é só bem ou só mal, ela não tem piedade ou compaixão. Ela é o que é. Mas dá-nos uma oportunidade, de sermos nós a descobrir as nossas respostas, sentindo-as e vivendo-as. A violência, a guerra, a morte, a dor, a injustiça, a revolta... tudo sempre existiu. E não é com frases feitas, julgamentos e linchamentos públicos que se chega lá. Eu sou pai, posso ser o melhor pai do mundo para os meus filhos ou ser o pior trauma para eles. O que quero dizer é que o meu amor existe, e não deve depender do que eles pensem de mim e o do meu pensamento de Super Ego sobre o julgamentos que eu possa fazer à minha própria condição de pai. Depende sim da consciência que eu tenha sobre esse amor. O tomar consciência se ele de facto existe mesmo ou não e se existir é a verdade, logo é o caminho livre, independente dos juízos, das vaidades externas ou das opiniões supostamente altruístas dos outros. Eu sou pai, mas não posso ser os meus filhos. Esse papel tenho-o com os meus pais, mas também não sou eles e nem eles sou eu. Logo, ser pai não é ser um padrão. É ser uma responsabilidade individual e uma vivência única e Una. Complicado? Não, é apenas o reflexo do que se descobre dentro e nunca fora. Logo, os vídeos são violentos, são. As notícias são violentas, são. Mas tudo é o espelho do que somos enquanto indivíduos. Há dias um grande amigo dizia-me: " Aproveita sempre todos os que te fazem mal, ou todos os padrões de suposto erro que possas viver, pois são as tuas melhores lições, e são as tuas melhores oportunidades de descobrires quem tu és." Vivemos muito em padrões. Vivemos muito dentro de uma caixa própria, não dentro de nós, mas dentro de um círculo de conforto, onde pensamos ser reis e donos do mundo. Eu também tenho esse círculo. Procuro todos os dias em sair dele cada vez mais. Procuro aprender não só com o que as pessoas me deixaram, mas também com o que delas posso aprender para me conhecer mais e melhor. Notas importantes: caminhos sempre da perfeição para a imperfeição, pois é da imperfeição que vem a descoberta. Não viajo para mudar o mundo, viajo dentro de mim para mudar um mundo, que terá o reflexo na mudança do mundo... Pois o meu mundo exterior é reflexo do meu mundo interior.

publicado por opoderdapalavra às 13:37
13 de Maio de 2015

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Preciso de uma nova história... Algures no pensamento de uma criança esvoaçou uma nova vontade, uma sensação de quem deseja virar uma página, uma folha escrita que precisa de ficar de novo em branco, para gastar a tinta que ainda retém na caneta dos seus dias. Pega no caderno e puxa atrás uma série de lembranças. Simples fragmentos. Olha atentamente todos os recantos das palavras, as frases que ficaram mal escritas, as sensações mal interpretadas, os sorrisos partilhados, as brincadeiras solitárias. São páginas extintas no tempo, que apenas ficaram redigidas no baú da memória. Olha à sua volta. A árvore onde se estendeu como pássaro, e de braços abertos gritou mais alto que os pardais. Viu o chão que pisou com a bola no pés, em meias fintas e fintou-se a si próprio, no riso sonoro de todos. As suadelas jorram como pintas que serpenteiam as camisolas meio sujas do pó que se levantou. As corridas misturam-se com os braços que se estendem pelo ar, num bailado onde a bola é simples artefacto. Ficaram os golos. As defesas. As feridas onde o sangue se fechava com meia dúzia de saliva e logo se corria de novo. O campo era uma mera mescla de caminho com pedaços de erva e uns pinheiros e pedras à mistura. A criança tirou da sacola outra lembrança. De um poço. Uma queda, água, a luz que entrava com os seus raios, um braço que o puxa, primo que ficou em abraço, e o choro, assustado, pegado pela mão da mãe, mais em desato de palavras que se espalhavam pelo ar, como susto que moveu todo o coração. Tirou outra foto. Uma casa, camas, quartos e salas, cozinha onde o cheiro da madeira se confundiam com os sabores de bolos amassados em massa fina. Pombas nas traseiras, um cão que fugia para trazer galinhas pelo pescoço, paredes caiadas que caíam ao almoço, e a noite, a mesma que parecia assustar, mas que era uma mera resposta " está tudo bem, dorme meu anjo"... Anjos nunca foram as vezes que se ia ao poço buscar a água que alimentava a casa. A criança sabia que a fortuna dos dias não é feita de dinheiro, mas de olhar uma mesa com um pai, uma mae, um irmão, e comida no prato. Não se falava muito, mas o muito de pouco que se dizia era alimento da alma, como se de amor conseguíssemos obter comida para os dias. Criança gaiata que se juntava no penedo da saudade, saudades de tempos em que o ar, o sol, o rio que corria ao longe, a chuva, as nuvens, eram a sala de brinquedos preferida. Falava-se de sexos, de pelos que cresciam sem se perceber que homens eram aqueles que cresciam dentro deles, com desejos estranhos no olhar, com ilusões tímidas de quem gostava de baixar os olhos pelas pernas de garotas mais velhas que por aquelas bandas passavam. Ponte romana que atravessava um rio meio perdido no seu leito. E a casa dos vidros partidos. Pedras soltas no caminho da escola faziam o deleite da criançada que atirava alvo de vidro partido e repartido. Não havia raptores, apesar de teorias de homens que vinham de saco em riste e levavam aqueles que se portavam mal. Criança pequena assustou-se, mas quando grande abraçou esse homem, que de saco aos pés, apenas refugiava-se da ideia de solidão perdida. Criança. Pequeno ser de inocência. Cantava com voz de arrepio, sem notar no desafino, mas alegre nas pautas e na ausência de letra, apenas um grunhir de sons, e a imaginação que uma multidão lhe prestava a devida admiração na vibração de uma guitarra sem cordas e de madeira esticada. Como são puros os sonhos. Criança que cresce. E porque temos de crescer, se de pequeno se vive a beleza, a eterna fonte de felicidade que depois se procura como doido, louco adulto a riscar listas intermináveis de objectivos, que nunca terminam nem nunca começam de verdade? Gostava de receber, criança viva, um novo abraço, um beijo, um sorriso do pai que lhe entrou em casa, da mãe que lhe explicou como uma pomba branca voa livre nos céus de um campo aberto. Porque de amor vive o animal, ser que vem a uma vida sem explicações, e depois procura explicações porque veio cá. Talvez a nova história devesse ser de criança, sem receio de se amar, sem pensamento de fronteiras entre os homens, e de noção exacta de que o dinheiro afinal nunca foi a felicidade, apenas uma mera circunstância do caminho. Porque mesmo de criança viverá sempre o adulto, olhando o caminho, e continuando a caminhar. Tirei a minha criança, com algum pó no cabelo, de dentro do baú. É bom ter-te de novo aqui, ao ver-te de braços abertos, no galho da árvore, pronto a voar...

publicado por opoderdapalavra às 00:48
09 de Maio de 2015

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Foto Pedro Rezio

a velocidade não conta. não faz parte da matemática das coisas que por aqui se vivem. dizem que ela, a fórmula das contas, morreu no alto do monte que divide a terra dos homens desta terra, a das pessoas felizes. estamos na terra das crianças, das que nunca crescem, das que ficam sempre coladas num tempo indiferente. felizes porque dizem os sábios, senhores de turbantes que cobrem a cabeça que pensa e vestem branco que deixam cair no corpo, que aqui não chegam os pesadelos dos homens, apenas os sonhos dos céus. e estes tem cor azul, nuvens que se deixam escorrer como laivos de rio e um sol que abrasa a vista. tem ainda um comboio que liga as duas pontas. são mesmo duas, as pontas que distam distância entre o ser-se homem e ser-se criança. mas o comboio nunca chega a tocar nenhuma delas. para que elas nunca deixem de ser pequenas criaturas que um certo deus, que certo dia de verão, desceu do seu cadeirão e no barro lamacento de um carreiro de água, de mãos de divino saber, moldou corpos que só sabem sorrir. "são inocentes demais para saberem o que é uma dor" palavras escritas por um dos poucos homens que atravessou as montanhas. mas esse deus não fez do barro a inocência. ele criou antes a pureza. e puro é o olhar de sharim, menina de olhos escuros, cor de lava arrefecida, cabelos que se soltam sempre que o vento teima em falar, e um corpo esbarrado nos tons do barro moldado. pensamento de sonhos, e um sorriso de ilusão. iludida com a velocidade, com o sentir do balanço do comboio que desbravava entre pontas. " porque viajas aqui, sharim?" o homem conheceu-a aquando da sua breve passagem. " porque sempre que ele escapa ao silêncio, faz barulho, as montanhas parecem andar depressa, o rio nem dou por ele e os pássaros ficam mais lentos que os meus olhos. é isso que nos faz rir. como tudo muda quando o comboio começa a andar" e todos começavam a soltar gargalhadas, por entre barras pintadas a cinza pelo pincel de um tempo que não passa, mesmo com a velocidade da locomotiva. o homem ainda hoje se recorda de tirar a máquina da sacola, tirar fotos aos rostos que pareciam brilhar por entre o pó que os cobria. " mas se só vocês habitam estas terras, onde estão os homens sábios?" " além" e ela apontou para uma das maiores montanhas que se erguia nos fundos do horizonte. " já os viste alguma vez?" " nunca. mas eles falam tão alto que a brisa traz-nos as conversas. e são tão belas que nós só conseguimos rir. o que é isso que tem na mão?" " é uma máquina fotográfica. regista o teu rosto, os teus sorrisos. mas fica numa imagem parada." " parada como quando o comboio assenta no silêncio?" " sim. ficas como és, mas não falas." " e como se pode ficar sem falar? assim não posso sonhar" " tu sonhas falando?" " claro. falo com a terra que se mexe, as cores que se movem, o céu que traz as nuvens e a água que alimenta o rio." " e sonhas com tudo? ou gostavas de sonhar para lá da montanha dos sábios?" sharim pausou. olhou o homem com uma certa tremura no corpo. os lábios pareciam tomar outra forma para além do sorriso. os lábios ficaram mesmo mais vermelhos, de tanto serem apertados. espantou-se o adulto quando viu cair uma pequena lágrima do rosto dela. não falou. sentiu que devia ficar retido nas palavras, guardando-as. até ela abrir o coração, " um dia a conversa dos sábios trouxe o conto do mar. falavam de uma imensidão de água que se perde na vista e nunca se alcança o seu fim, com o olhar. se ele existe, era o que eu sonho mesmo poder ver." o homem ficou atônito. fechou-se em pensamentos e guardou a câmara. pegou num caderno e um lápis. pediu a sharim que desenhasse o que ela escutou sobre esse mar. no balanço de um lado ao outro, varria-se a velocidade do comboio, e os dedos de pequena riscaram um desenho que ele ainda hoje guarda. " este é o o meu sonho." todos os dias, em sua casa, num lar para lá da terra das crianças felizes, vive um homem, pregado nos pesadelos de todos os homens, com uma foto de um sorriso feliz, e o desenho de um sonho sentido. nas últimas escritas, junto ao final da folha que encerra o seu caderno de viagens, deixou escapar, afinal a felicidade nunca se perde quando os olhos deixam de ver o silêncio e passam a dominar o movimento do mundo. mas nós homens não conseguimos ver isso enquanto não percebermos que esses olhos tem de ser da criança que sonha dentro de nós. a minha ficou lá, onde o céu e o vento trazem conversas de homens velhos e o sol oferece-nos a velocidade de um comboio repleto de sonhos, de inocência sem dor, de crianças que serão sempre as nossas crianças. só depois percebi que afinal precisava de conhecer o mar, só após ver o desenho da pequena sharim.

publicado por opoderdapalavra às 00:28
04 de Maio de 2015

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E chegou o dia seguinte mãe. E hoje, como ontem, contínuas a ser a minha mãe. Aquela que há 44 anos atrás pegou-me nos braços e adormeceu-me no seu leito. Aconchegaste-me e deste-me um nome. Uma identidade. E hoje mãe, todos me chamam ainda pelo mesmo nome que tu escolheste para mim. Incrível como somos filhos. O que é isso de ser-se filho e chamar-te mãe?É vir de dentro de ti, semente que cresceu e se desenvolveu como caule de flor nasce pela primeira primavera que traz o sol de março. Mas ainda cheguei pelo inverno. Tarde, contas tu, pois de corpo preguiçoso não virava e revirava nas voltas que a volta não dei. 10 meses trouxeste-me dentro de ti, carregada com este parco corpo de rapaz, menino sem choro, criança sem berro, olho fechado, cor de roxo esguio. Mas tu foste a primeira. A primeira mãe que me deu o seu calor. Deste-me o leite, a papa, a sopa que borrei no teu vestido. Deste-me a palmada, o lenço para o ranho que saia com o espirro. Deste-me a paciência de quem espera que a febre passe. O sorriso de quem limpa a gota do sangue que sai cortado do joelho raspado. Ralhaste quando era o franganote de palmo e mais um pouco de meio palmo, que trazia o pão e comia um ou dois pelo caminho. Foste a primeira mãe. A segunda que conheci foi a tua. Lembras-te dela eu sei. E choras. Mas choras porque sabes o que o amor de uma mãe pode fazer. Por vezes cega tanto que nem nos liberta. Cega tanto que nem permite que consigamos ver que a protecção de uma mãe é como a leoa que cobre a sua cria e empola os dentes a todos os que por perto tentam caçar. A tua mãe era especial. Foi a minha segunda mãe. Lembro-me das bolachas embebidas em manteiga, da aletria, do doce de abóbora, do sorriso que chegava sempre com o raiar do sol e o beijo pelo entardecer. E lembro-me das histórias que contas dela, do carinho com que ela tratava todos os que ela amava. E ama. Ela ainda te ama mãe. Não chores, porque só chora quem não tem ninguém para amar. Sabes que te escrevo hoje mãe, no dia seguinte, porque ontem foi apenas mais um dia em que foste minha mãe. Hoje contínuas a ser minha mãe, logo é o teu dia também. Sempre me conheceste, sabes como eu não gosto de escolher dias para me lembrar dos que amo. Sabes que sempre fui encolhido, escondido, apesar de trautear meia dúzia de conversas com as senhoras lá na quinta da formiga sem formigas por perto. De pequeno, ainda reguila, meio caído para chamar atenções, fazia teatros e discursos eloquentes. E cresci mãe com as atenções que devia ter. Bulhei por mais, mas deste-me aquelas que afinal conseguias dar. Porque como dizia tua mãe, só quando grande se percebe porque o andor anda sempre carregado pelos ombros dos homens. É que eles têm amor no seu peso. E tu sempre foste assim. Carregaste-me sempre nos teus finos ombros, porque quando a grande se chega, se percebe que o fazemos pelo peso do nosso amor. Mas sem nos pesar o coração. Estes anos mãe discutimos várias vezes. Engane-se aquele que pensa que amar não é discutir também. Por isso sofremos, por isso ficamos magoados, por isso largamos lágrimas, porque amamos. E nós tivemos esses momentos. Mas voltamos, porque há sempre o dia em que voltamos para o abraço, para o beijo, para o sorriso, o carinho, o "já passou, está tudo bem, agora". E é tão bom quando esse instante chega. E mãe, hoje contínuas cá. Que bom ouvir a tua voz quando preciso dela. Ouvir aquelas palavras de "meu filhinho, como estas?", por mais infantis que possam parecer, adoro-as, porque uma mãe é sempre uma mãe. Ensinaste-me a ser quem sou. Tu e o pai, claro. Que não me posso esquecer dele. Fui aprendiz de encontrar as portas para sair, os caminhos para seguir, o rio para navegar. Tentei, como continuo a tentar, a ser um bom aluno teu, mãe. Não és perfeita, nem digo que és a melhor ou a pior, sabes porquê? Porque és a minha mãe. Porque deste-me luz... Em vez de escuridão. Porque deste-me um nome... Em vez de esquecimento. Porque deste-me alimento... Em vez de vazio. Porque deste-me o que de melhor tinhas para dar, independente do seu valor...e como sempre disseste, que, dá aquilo que tem mais não é obrigado. E tu deste, por isso mais não dês... Porque tudo o que me dás é o melhor de ti, mãe. Hoje é o teu dia, como será amanhã. Escolhi um rio para te escrever. Porque? Porque vejo-te assim, como a água cristalina do rio que corre ao lado do meu, sempre conduzindo o caminho e alimentando toda a minha margem, meu caminho. Fica mãe. Fica mais um bocadinho, dois, três, os que quiseres. Eu preferia o infinito, mas sei que não podes. Mas posso amar-te até ao infinito. À minha maneira, porque como tu, é a melhor que eu tenho em amar-te assim, Mãe! A minha Mãe! Grato. Pelo que sou e quem sou! E tu pai, não fiques com ciúme vadio...hoje também é o teu dia. E amo-te da mesma maneira, com a melhor que tenho em amar-te assim. Tu és o outro rio. Tenho uma margem para ti também. Fiquem os dois, assim, mostrando-me que afinal a minha segunda mãe tinha razão. Carregamos o andor pelos ombros, porque é assim que levamos o peso do nosso amor, sem nunca nos pesar no coração. É assim o dia seguinte...

publicado por opoderdapalavra às 00:29
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Grata, sorrisos :o)
Quente.Arrebatador.
Leitura muito agradável :)Convido a leitura do meu...
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