E ele voltou. Regressou à origem, raízes de onde estendeu todo seu corpo, inerte no pensamento de apaixonado. Regressou como no primeiro dia, de mochila pelas costas, o sol a cair-lhe no rasto, a sombra a morrer na estrada. Os passos eram pesados, deixando cair cada pé, como se deixa cair o peso de uma memória. E assim era a sua caminhada, a da lembrança, das inúmeras recordações que pulavam como pequenos gafanhotos do baú do seu inconsciente. Não conseguia dominar tanta fortuna que amassava toda a pobreza do seu coração. Estava em pequenos pedaços de papel riscado.
Voltou e abrandou perante ela, sem a olhar, sem lhe fixar as retinas. Escapou os olhos pelo chão, pelo alcatrão rarefeito. Deixou o corpo em silencio. Cabeça tão baixa que ela percebeu que lhe escapava por entre os ramos. Foram apenas segundos, aqueles que o manteve ali junto do seu tronco. Descolou-se dela e foi até junto da mesa. A antiga mesa onde escrevera os poemas. Aqueles que recitou pela noite, com a lua já alta e vestida de um brilho ofuscante. Os mesmos que levaram os lábios a adocicarem-se, as mãos a tremerem umas nas outras, os corações a gritarem pelas borboletas que se remexiam nos estômagos. Depois ficavam as estrelas, não as do céu que já lhes caia sobre as cabeças, mas as que se desenhavam nas paixões que absorviam um do outro.
- Deixou-te?
- Não quero falar.
- Mas tu não falas. Sentes. E quando o fazes, todas sentimos.
- Quero cair aqui mesmo, enterrar todo o meu corpo nesta erva fresca, nesta terra suja, e deixar-me comer pelos torrões. Já não tenho paixão para me aguentar nem amor para viver.
- Pareces um abandonado. Um desalojado do seu sentimento. Se vens à procura de pena, de um ramo ou folha de sentimentalismos baratos, vai-te embora. Aqui não recebemos aqueles que caíram no poço e aí se afogaram, e ainda nem notaram.
- Então porque me deixaste ir naquele dia? E nos dias a seguir? E nos seguintes ainda? Sempre que vinha até esta mesa, escrevia como se fosse um duende das palavras, uma espécie de mágico da floresta que construía poemas que até encantavam os pássaros, esses que chilreavam como verdadeiros apaixonados. Porque me deixaste ir, agora que me jogas no lixo?
- Sabes uma coisa. Olha para mim. – ele quase não conseguia erguer a cabeça. Foi preciso um grito mais sonoro, um que acordou a floresta, que fez o vento despertar e abanar todas as árvores que por ali pareciam adormecidas – olha para mim já te disse!
- Sim, estou a olhar. O que queres? – levantou o cabelo, o queixo, os lábios que tremiam enquanto os olhos esvaziavam-se em lágrimas. – estás contente de me ver assim?
- Não te interessa se estou contente ou não. Interessa-te outra coisa.
- O quê, árvore sabichona?
- Interessa-te olhares-te no espelho do teu ego. Sabes o que te estragou? Não foram os poemas, nem as horas que junto a ela viveste a doçura dos corpos, ou mesmo os silêncios que ambos partilharam na sombra dos nossos troncos. O que te estragou foi a tua vontade de a quereres apenas para ti, como se fosse uma espécie de objecto que escondes do mundo e só mostras aos teus olhos. E sabes que essa jaula fê-la fugir, fê-la assustar-se como um pequeno mosquito e logo escapou-se para onde a tua figura não pode ser avistada.
- Se calhar tens razão. Mas o ultimo poema não era para ela fugir. Era para lhe mostrar o quanto a amava.
- Ela leu-o?
- Não. Rasgou todos os outros na minha porta. Deixou-me pedaços e em pedaços. O resto não vale a pena contar, porque foi apenas a minha agonia até aqui.
- Lê o poema.
- Para quem?
- Para mim. Fecha os olhos e imagina-a. Ela está diante de ti, por uma ultima vez. Tens a oportunidade de lhe mostrares o que vai dentro de ti, para lá das ervas daninhas do teu ego.
Ele apagou o olhar. Torceu o corpo com força, arrepiando o banco e o chão. Estendeu as mãos sobre a mesa. Molhou os lábios como sempre fez. Inspirou com toda a força que lhe ia, ainda, na alma. E deixou sair,
Se soubesse escrever,
daquelas palavras que se dizem magicas,
daquelas letras que se tornam ilusões,
conseguia,
pela caneta que escorre,
que se deixa cair por entre dedos,
atormentados de tanta paixão,
um poema.
Sim, a simplicidade de uma poesia,
sem grandes pinturas,
cores,
formas esculpidas no ouro,
prata,
bronze,
ou riqueza que possa existir.
Seria apenas um pequeno presente,
um embrulho onde se coloca,
com um sorriso,
uma pitada de paixão,
alguns pós de admiração,
uma brisa de desejo,
e um oceano de amor.
Pouco para ti,
pois uma princesa como és,
habituada à fortuna da beleza,
mostrarias por certo,
em pequeno gesto,
um laivo de doçura.
Mas para mim,
servo que se arma a teus pés,
seria entregar-te o mais valioso,
o mais puro,
o segredo dos segredos,
o meu coração.
E voltou o silencio. Ela deixou-o chorar como uma criança. Deixou-o entregar-se à dor que vinha do peito e lhe explodia na face.
Ela chamou o vento. Ele chegou depressa, soprando uma rajada. Dobrou-a até os seus longos ramos tocarem o chão. Reparara que na mesa, o caderno mantinha-se aberto, nos longos e sentidos poemas que ele escrevera. Virou-lhe uma página. E com outra rajada o vento soprou-a para que deixasse uma pequena joaninha na folha. Depois regressou ao seu lugar.
Ele mantinha-se fechado no seu mundo de sofrido. E ela chamou então o sol. Ele ergue-se do horizonte, ainda meio adormecido, e rasgou toda a floresta. Pediu-lhe alguma descrição. Ele percebeu de imediato. Os seus raios foram tão intensos, que ofuscaram tudo o que se conseguia perceber com o olhar. A cegueira chegou à floresta. O sol caiu dentro dela. Houve um tremor que a própria terra sacudiu, quando as raízes se estenderam até aos pés dele. Foi quando, assustado, acordou do seu sofrer. Estava tudo demasiado brilhante. Tinha a insciência dos sentidos. Esfregou-se nas pestanas. Algumas não suportaram e caíram pelo deslize dos dedos. E estava de costas para a mesa, quando tudo ficou mais claro, como se o brilho fosse um nevoeiro intenso que deixava o horizonte invisual.
- Não é para mim que deves estar a olhar. – não percebeu. – eu sou uma árvore apenas. Estou aqui todos os dias, e todos os dias estarei, até ao dia em que a brisa da manha quiser que o meu tronco caia pelos aromas da tarde. Nesse momento serei apenas uma memoria. O que guardas de mim, nunca saberei. Mas de ti, levarei na minha seiva, o teu rosto, o teu sorriso, as tuas palavras que escreveste junto a nós, encostado a mim. Os beijos que trocaste na minha sombra, os jogos de escondidas que permutaste comigo. Mas levo algo mais importante, levo a ternura do teu coração. – ele levantou-se e preparava-se para a abraçar – espera. Antes desse abraço, quero que leves algo meu. – e deixou cair uma pequena folha. O aroma era da primavera. Ele acolheu-a nas mãos. E depois de lágrimas e sorriso, abraçou-a com a força que um homem pode ter. Tão forte que se invadiu por todas as que por ali viviam. Todas se abanaram, quando experimentaram o encrespar das raízes dela. – agora vai.
- Embora?
- Não. Vai, vira-te, que alguém espera por ti.
Aquele corpo de homem, meio trémulo e pouco recomposto de tanto afecto, inverteu-se e foi quando o seu espanto o deixou mais do que tremer. Um terramoto passou-lhe pela pele. Junto à mesa, sentada, sorridente como sempre, de lábios mélicos, olhos abertos para engolir o mundo, cabelos que o vento dançava, corpo de princesa, estava aquela que o seu coração tinha jurado amar. Ficou tão absorto que nem se movia. Mas um galho dela veio e empurrou-o. Segredou-lhe ainda que admirava todo o seu sentir.
Ele sentou-se a seu lado. Ficaram em beijos. Ficaram em percussão da pele. Ficaram, ali, onde veio o sol e junto com a lua, abraçaram-nos. Lá em cima as estrelas brilharam tanto, que se diz pelos povos vizinhos que pequenas fadas vieram até aos terrenos dos homens, dar picadas de amor.
Um dia, um certo dia de verão, a manhã trouxe uma brisa que subiu pelo tronco já velho. Levou-o no aroma da tarde e quando chegou o sopro da noite, ficaram apenas as memorias. Um dia alguém foi muito feliz debaixo da sombra daquele castanheiro. Mas certo dia, alguém voltará a ser feliz, debaixo de uma árvore qualquer.
O mar, sempre que traz a maré, traz noticias do velho castanheiro, alma que viaja pelas brumas do horizonte. Está feliz e sorri sempre que o fresco das ondas vem à areia e molha os pés dele e da sua amada... e dos seus pequenos príncipes.
Os finais nunca são felizes, conversou-lhe ela um dia de outono. Mas podem nunca ser finais, se a felicidade for descoberta na seiva de cada um.
O resto é apenas viver para lá do que o dia nos traga, vendo sempre as mesmas coisas com outros olhos.
- Já viste que nunca sou igual durante o ano. Mas serei eternamente igual no teu coração.
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