“Quando estou sozinho
sonho com o horizonte
e faltam-me as palavras
Sim, eu sei que não há luz
e num quarto quando falta o sol
Se você não está comigo, comigo”
O sol havia caído na linha que separa o céu do mar. O seu olhar perdia-se nas gaivotas que regressavam de lugares distantes. Havia no ar um cheiro trazido pelas ondas, as que embatiam a sua força contra os rochedos no fundo da falésia. Mas ela não queria escutar a ondulação. Apenas a voz que saia do gira-discos. Rouca, ao mesmo tempo adocicada pela profunda paixão, absorvia-lhe os sentidos e as memorias. Aquele dia em que ele saiu e deixou na porta o bilhete de despedida, sem deixar avisos, sinais em que pudesse perceber tal façanha. E a música estendia-se,
“Ergo as janelas,
mostro a todos o meu coração
que você acendeu
Feche dentro de mim
a luz que
você encontrou pelas ruas
Com você partirei
Por países que nunca
vi e vivi com você
Agora sim os viverei
Com você partirei
Em navios por esses mares
que, eu sei,
não, não existem mais
Mas com você eu os viverei”
Regressou ao copo que havia deixado na mesa. Engoliu tudo numa fracção, sem deixar que a respiração fizesse intervalo. As lágrimas já caem sem pedir licenças. Está assim faz muitos meses, mas cada vez parece que a lembrança foi escrita ontem. O coração palpita como uma locomotiva, quase explodindo pela boca ardida pela bebida. As pernas estão fracas e os braços nem já se erguem como o faziam quando o abraçavam. Pensar na saudade é deitar-se numa vala e cobrir-se de terra, regressar ao pó do desamor. Tem tantas dores no peito que lhe corroem o espírito. Lá fora o vento levanta-se e varre cada ramo de árvore, e entra pela varanda, inundando a casa com o odor das flores de outono.
“Quando você está distante
sonha no horizonte
e faltam as palavras
E eu, sim, sei
que você está comigo, comigo
Você é a minha lua, você está aqui comigo
O meu sol, você está aqui comigo, comigo,
comigo, comigo
Com você partirei
Para países que nunca
vi e vivi com você
Agora sim os viverei
Com você partirei
Em navios por mares
que, eu sei,
não, não existem mais
Com você eu os reviverei
Com você partirei
Em navios por mares
que, eu sei,
não, não existem mais
Com você eu os reviverei
Com você partirei
Eu com você”*
A música ficou no silêncio, no mesmo que o seu coração habita. Já deitada num dos cantos da varanda, embrulhada num cobertor, o mesmo que ainda guarda o cheiro dele, ela apenas treme de amor. Gostava de fechar os olhos e sonhar com os lençóis suados, as mãos agarradas à pele quente de paixão, os ventres unidos e os lábios colados. Sonhar com os beijos que se estendiam pelo corpo todo, arrepiando o sentimento. Sonhar com o acordar e abraçar alguém que dorme serenamente a seu lado, como vigia, como farol que ilumina a palavra do amor. Sonhar com o seu nome, que era dito pela casa, em todos os cantos e recantos, nas esquinas dos armários, escrito pelas cartas que se trocavam, e nas teclas do computador. Sonhar com a brisa, que vinha de norte, anunciando que vinha a caminho, no seu desportivo, vermelho como sempre gostou, chapéu protegendo os sedosos cabelos loiros e no rádio a música que a recorda. A mesma que agora terminou. E abriu os olhos e tudo foi apenas um sonho. Ele partiu e não voltou. Escreveu um pedaço de papel dizendo que foi navegar mares distantes, que não conhecíamos, que nunca navegamos, sozinho, à procura de uma resposta. Pena que nunca deixou a pergunta. Talvez o vento e o sol a levou para bem longe. Assim também foi o amor. Talvez um dia regresse com a manhã de uma qualquer primavera. Agora, agora o Outono adormece no frio da noite que já cobre todo o horizonte e ela fecha os olhos, sonhando. Afinal, pelo menos isso, o adeus não conseguiu levar.
* Letra traduzida da música de Andrea Bocelli “Con te partirò”