podes pensar, podes falar, mas tudo o que escrevas tem o poder de ficar.
09 de Setembro de 2014

 

 

 

Conto 2.  A descida.

 

Existem pessoas que gostam de despertar bem cedo. Por vezes demasiado cedo. Ainda a noite está caída sobre as casas, e nem um vestígio de luz paira pelo horizonte, e já erguem o corpo. É barulho, é conversas em voz baixa, mas que se escutam. São portas que abrem e batem ao fechar. Luzes que vão entrando na camarata, sem pedir licença.

A noite foi curta, ou o descanso. Lá a chuva foi lavando as estradas e o caminho. Os dois olhos, o direito e o esquerdo, lá se iam abrindo, com pouca vontade, mas obrigados por um sururuco quase insuportável. Ainda pastosos em remelas,  eles tinham a sensação de um cansaço marcado.

Quando o corpo se ergueu, já havia quem caminhasse, quem dissesse adeus, até breve. Os cheiros estavam demasiado misturados e os olhos apenas fixaram as negras nuvens que se moviam pelo céu. A visão transmite ao cérebro o estado exterior do corpo. Este processa a informação e cria uma sensação. Ficou a de chuva, um pouco de frio e muita humidade a entrar nos ossos.

Houve troca de bons dias entre várias culturas e línguas. Vestir o corpo, arrumar tralhas desarrumadas, e mastigar muito do barulho que não deixaram os olhos dormir o que precisavam.

Já na rua, um pequeno almoço em troca de ideias sobre como seria o segundo dia. Os olhos, quer o direito como o esquerdo, fixavam pão e uma chávena de café, que bufava um vapor de sabor a quente.  Revigorados, uma foto para o caminho e passo ante passo, começou-se.

Estradas, cruzamentos, pessoas novas, caras sorridentes, e o íman, aquele chamamento que crescia, que puxava. Os olhos iam conversando:

-       Vês aquelas nuvens? – questionava o direito.

-       Sim. Irá chover?

-       Não sei. Espero que não. Mas olha, atenção aos carros, temos de atravessar com cuidados.

-       E às setas, se as perdemos, as amarelas, perdemos todo o caminho.

Vieram ruelas, penedos que se estendiam e cortavam a estrada, pessoas que se atravessavam para dizerem bom dia, bom caminho e um até breve. Havia já várias nacionalidades. Mistura de culturas que se cruzavam no mesmo propósito.

A chuva, ou a falta dela foi dando lugar a uma humidade presente.

Chegou uma subida. Pequena no inicio, com uma povoação onde reinava o silencio, esse som que se perde na paz que cada vez mais se vai sentindo.  Mas a subida foi inclinando, e as pernas já andavam meio zonzas. Mas era como escalar uma montanha. Tem-se de chegar ao seu topo. Não se pode ficar para trás. Uns conversavam, outros iam perdidos nos pensamentos, outros ainda paravam para mais uma foto. Os olhos andavam perdidos com tanta coisa que não queriam perder. Um outro albergue, uma floresta, mais um monumento ao peregrino. Deixavam-se pedras nas sinalizações do caminho, símbolo de quem pede algo, de quem deixa algo.

-       Olha esta descida. – suspirou o esquerdo a certa altura.

-       Mas lá ao fundo está o fim da etapa, vede.

-       Sim, mas temos ainda um bocado para descer. Temos de ter cuidado, para não nos cairmos.

-       Não sejas medricas, não vês que é fácil. Depois descansamos.

-       Se dizes, eu acredito.

E desceram. Bastante. O íngreme do caminho fazia travar o corpo, obrigando-o a trabalhar mais os músculos. Mas Redondela estava lá ao fundo. O fim de mais um dia de caminho.

Na chegada ao albergue, este ainda estava fechado. Mas à entrada já se reuniam aqueles que só viram a luz do dia já com horas de passadas. Havia vários países. Os olhos não entendem línguas, mas observam as diferenças do que vestem, os sorrisos e os amargos de quem já pede uma cama, ou mesmo os que já aclamam por um pedaço de comida. Abriu o edifício, e foram entrando. Não couberam todos. Mas houve conversas entre o mesmo idioma, sobre o barulho da noite. Alguns assustaram-se com piadas ameaçadoras de quem desejava dormir calmamente. Mas era tudo no espírito de quem gostava de brincar e conhecer outros pensamentos. Sentia-se que estava-se perto.

À noite, durante o repasto de um jantar improvisado, juntou-se ao grupo uma boa alma. Cheia de conhecimentos, sabedoria humilde de quem já havia percorrido aqueles lugares. Contou histórias, abriu coração e partilhou amizade. Os olhos queriam chorar, mas de alegria. Não o fizeram, contiveram-se na delicia dos pormenores do que os esperava.

E chegou a hora de descansar. As luzes apagaram-se e houve silencio. Sentia-se um repouso merecido. E mais um dia que se fez caminhando, e mais Santiago continuava a chamar.

 

 

publicado por opoderdapalavra às 00:18
02 de Setembro de 2014

 

 

 

 

 

A passada.  Colocar um pé após o outro, cria-se um ritmo de passos que nos levam a algum lugar.

Hoje conto como dois pés, um de nome esquerdo e outro direito, iniciaram uma caminhada.

Como em todos os inícios, sentiam-se algo ansiosos com o começo, com o primeiro passo.

-       Preparado? – perguntava o esquerdo, meio trémulo, segurando uma perna que ainda tremia mais.

-       Claro. Viemos para isto e agora íamos desistir. – firme o direito não hesitava nas palavras.

E começaram. O chão era vidrado pela chuva que havia coberto toda a cidade. Mas não houve esmorecimento pelo sucedido. A cada passo, ambos sentiam que estavam numa aventura sem igual. Mas não foi apenas isso que sentiram.  Havia um íman, uma espécie de força inexplicável que os puxava. Tornava-se num impulso emotivo que fazia o esquerdo estender-se de forma mais rápida, motivando o direito a acompanhá-lo.

A chuva foi dando lugar a um sol radioso, que rasgava as nuvens, e enquanto mais se andava, mais o universo parecia querer iluminar o caminho.

Uma ponte. Dois lugares. Duas margens. Um rio. Pontes ligam pessoas, culturas, países. Ligam tradições, caminhos. Os pés atravessaram-na contentes de sentirem o ranger do metal, de verem a corrente que leva as partículas de água, e o verde que envolve toda o rio.

Uma vila. Lugar onde as casas se juntam, formando um desenho, uma forma. Casas que abrigam pessoas, que escondem histórias, que dividem espaços. Ao longo de toda a vila, quer o esquerdo como o direito estavam deliciados com os desejos de “bom caminho” de todos os que se cruzavam com o seu corpo. E assim se seguia o bom caminho.

O caminho atravessou ruas e vielas, pequenas esquinas, passeios e empedrados. Até se abeirar da terra, dividida entre a humidade das gotículas de chuva e do seco do sol que cada vez mais era forte e presente.

Havia um silencio. Aquele momento em que as palavras não são necessárias, atropelam a visão. Ele entranhava-se nos corações, espalhando uma sensação de paz. Os pés podiam sentir um certo cansaço, mas estavam absortos pela dimensão do que os puxava.

-       Sentes? – o esquerdo já não aguentou mais em reservar para si aquela sensação.

-       Algo a chamar? É disso que falas?

-       Sim.

-       Sinto imenso. Não tem voz, mas tem palavras, não tem som, mas escuta-se à distancia, não tem olhos, mas segue-nos em toda a parte.

-       É isso. Cada vez que ando, parece que me abraça mais. E menos medo tenho.

-       Pode-me doer o corpo, mas cura-me a alma.

E assim continuaram.

Houve paragens. Descansos, água que molhou os lábios, sorrisos que motivaram os músculos, e houve histórias. De cada um. Como pequenos segredos que se contam no recôndito  canto da emoção.

E seguia-se caminho. O sol ficava mais fusco, começava a dar ares de querer descansar. Era hora de chegar. Os pés, lavados em suor, queriam parar por uma noite.

Houve risos por entre aqueles que caminhavam, uma lágrima que se deixou cair pela etapa já finda, e um sabor dorido de quem se atreveu a caminhar. Havia pensamentos de duvida, sentimentos de olhar para a frente e pensar no que ainda falta. Mas, no aconchego de uma refeição, esquecem-se as dores, as questões de voltar atrás, e sente-se que ali é o nosso lugar, no caminho, caminhando.

Depois o banho. A água a correr, retirando a tensão, e os pés a refrescarem-se.  A cama. A sala repleta de caminhantes. Os cheiros. Odores que se misturavam em camaratas. E os sons. Que  pareciam não deixar descansar o esquerdo e o direito. Mas o conforto de um colchão, de uns chinelos abertos e de um firme cansaço, deixaram-nos adormecer, mesmo que pouco, mas o suficiente.

E na noite ficou o chamamento. A voz sem palavras, o íman que puxava. Amanhã eles sabiam que tinham de continuar. 

publicado por opoderdapalavra às 23:52
01 de Setembro de 2014

Um dia, num encontro de amigos e enquanto contava os pormenores de uma aventura estupenda que acabara de viver, eles simplesmente comentaram “tens muito material para escrever”.  O espanto de tais palavras não bateram em mim nesse preciso momento, mas uns mais tarde. De facto,  um escritor anda grandes caminhadas mentais em busca de uma inspiração, quando a pode encontrar em tudo o que vive e experiencia.

Não escondo que sempre desejei escrever um livro em que as pessoas que o lessem conseguissem atingir os níveis mais elevados do sonho em si. Perfeição? Talvez. Mas gostava de sentir que um leitor conseguisse voar e planar sobre nuvens inventadas, um novo céu e tocasse um novo mundo. As ideias podem ser sempre múltiplas, mas fui-me abstraindo de uma antiga máxima de que mostra o que tens dentro de ti e mostrarás sempre um mundo novo. Os sonhos estão aqui, nos dedos que compõem estas frases, nos olhos que acompanham a construção deste texto e na alma que se abre e se mostra em histórias, sejam elas de que tamanho forem.

Eu fiz um caminho de Santiago. Nunca me atrevi a escrever sobre ele. O atrevimento, achava, seria sempre demasiado pequeno perante a grandeza de tal experiencia. Cheguei a ler alguns testemunhos, artigos e descrições sobre o que era o caminho. Todos diziam que não seriamos nós que descobríamos o caminho, mas sim ele a nós. E pensava, como pode ser possível tal pressuposto?  Outra partitura de opiniões era a de que o caminho se fazia caminhando...sim, claro, ou então de bicicleta ou a cavalo.  Simples, não? Das ultimas eram as pessoas que se cruzavam connosco e as possíveis mensagens que nos iam entregando, como que premonições de vida.

Quando preparava o caminho, sabia que seria algo de especial, mas nunca percebi o quanto especial seria mesmo.

Tudo o que li, compreendi, apreendi e descobri.

Não querendo ser demasiado presunçoso, mas foi mesmo o caminho que me descobriu e não eu a ele. O caminho faz-se mesmo caminhando, como os passos que damos a cada segundo no percurso das nossas vidas, como cada batimento do coração e recebi muitas mensagens. E descobri pessoas muito especiais, únicas e repletas de uma espiritualidade especial.

E é isso que desejo escrever nos próximos textos deste blog, textos, histórias, testemunhos de um caminho que condiz com o da nossa vida, com aquele que nos leva através do rio das nossas existências. De facto, os meus amigos tinham razão, eu tinha muita matéria para explorar e escrever, fazendo o que gosto, o que adoro e o que amo.

Até já. 

publicado por opoderdapalavra às 23:10
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