Gostava de contar uma pequena história. Simples, sem grandes contornos de dramatismos ou romanceada. Uma história de um acordar. Só isso.
O corpo estranha-se na cama, entre lençóis de algodão, com o toque ensurdecedor do despertador. É sempre o mesmo carrasco que dá os primeiros cliques de acordar. Os olhos piscam numa ginástica matinal, à procura da melhor luz, aquela que melhor se adapte. A boca sabe a um infernal odor do jantar anterior. Foi assado, tinha enchidos, vinho misturado entre garfadas e garfadas de comida. Estômago cheio, dois cigarros, café e um digestivo. Nada mais, mas tudo se deitou com ele. E agora tudo apodrece nele, como os dias passados, ou as histórias que habitam na memória. O que deixamos para trás vai ficando assim, apodrecendo lentamente em algum lugar, seja no corpo ou na mente.
A casa de banho tem já o cheiro do pelo por lavar. Há ainda aquela primeira urina que escorre no barulho da loiça, deixando um apego de alivio. A barba são uns minutos, o banho mais uns quantos, perfumar e olhar de novo o espelho.
Quantos anos se passaram, e eu, ainda aqui estou?
Quantas noites dormi e nem reparei que continuo a aparecer neste espelho?
Quantas mulheres se deitaram no meu leito e continuo apenas eu a ficar pela manhã?
Afinal quanto tempo mais preciso de perceber que os cabelos brancos são uma mera circunstância da vida?
Deixa este diálogo com o outro do espelho num ritual matinal que apenas serve para se escutar na imensidão da casa. A solidão chega também com a manhã. Cama vazia, quartos vazios, mesa só para um.
Eu disse que era só uma história. Pequena, simples, e solitária.