podes pensar, podes falar, mas tudo o que escrevas tem o poder de ficar.
20 de Dezembro de 2012

 

 

E naquele dia tudo aconteceu.

A barriga ficou sem o bebé, o homem descansou os pés, a vaca deixou de ruminar, o burro abandonou o estábulo e as luzes apagaram-se. O sono veio e todos adormeceram. Não havia ninguém nas ruas, apenas um pouco de vento, umas quantas folhas esquecidas do outono, a esvoaçarem pelo ar, e umas larvas que ainda desdenhavam o chão terroso. Havia o silêncio, a falta de qualquer som que viesse perturbar tanta calma. Nem o bebé chorou, nem as lágrimas que escaparam dos olhos da mãe, nem mesmo o bocejo do pai. Nada mesmo conseguia alterar aquela ausência. Era como se o tempo tivesse parado, ficado esquecido, desligado. A noite não passava ou o dia não nascia, as estrelas não se moviam ou era a terra que adormecera. E tudo aconteceu.

José foi pai nesse momento, depois de ter passado um dia inteiro às voltas pela maternidade, tentando esquecer aquele nervosismo que se apoderava dele. Não conseguia retirar de si uma enorme ansiedade, sabendo que não poderia demonstrá-la à sua mulher que sofria com dilatações perlongadas, na sala, onde aguardava que chegasse a hora. Aquela onde o relógio se transformou num silêncio absoluto. Ainda era dia quando foi chamado, e foi quando conseguiu parar, descansar os pés que ardiam de exaustão, de tanto palmilhar. E foi assim que entrou e viu, ali, nos seus braços, aquele pequeno rapaz, que fechava os olhos com tanta força que enrugava os sobrolhos. O choro ficou fechado e o aperto de um pai emocionado, deixou-o aconchegado.

Nesse momento, Maria perdia o bebé. Não é fácil para uma jovem rapariga de 16 anos, engravidar. Fitava, com lágrimas, as mulheres que limpavam a vagina, ensanguentada, depois de ter raspado o útero que perdera o fruto. Aquele instante é uma mera paragem, sem voz, que se apaga no tempo, naquela lembrança de criança, em que brincava com as bonecas, sentada junto ao rio. O mesmo onde o rapaz chegou, numa tarde de verão, onde o calor dos corpos crispava a corrente daquele riacho. O beijo intenso desde logo soltou neles uma vontade, e dela veio o consumar que brotou na semente da flor, flor que nunca viu a luz do dia. Porque saiu da barriga, de Maria, que deixou ficar no tempo, a coragem de avançar, e vestiu a vergonha, a mesma que a levou a enterrar a flor, sem cor.

Nesse momento a vaca deixou de ruminar, e foi levada para junto das outras, a manada que aguardava junto ao camião. Eram enormes, bem tratadas, sem que se percebesse de alguma malha desfiada de má gorduras ou maus hábitos. Tudo erva bem verde, regada pelas chuvas de outono, e frutadas pelo degelo do inverno. Saberão elas para onde vão? Dar de comer aos que se deliciam com um belo pernil fomentado, ou a picanha que se esfiapa nos dentes, logrando palavras de satisfação. Mas a vaca desconhece o ritual, apenas entra sob a alçada do comando do homem, que surripia uns assobios a uma flauta de dois tons, e as encanta para dentro do camião. E nesse momento, preciso tempo em que a erva amealhada no estomago da vaca deixa de ser um fardo de despensa, passa a ser uma fonte calórica de energia. Aquela que a vai estimular a viajar, para o seu fim.

Naquele preciso momento, o burro deixou o estábulo. Os burros são sustentos de carga por aquelas paragens. Viver nas montanhas tem como vicissitude, a ausência de meios que possam ajudar na lavoura. E o burro carrega no seu dorso, um imenso arco de madeira, que ajuda a puxar o arado, rasgando os solos. Faz frio nesta altura do ano por estas bandas. Mas o seu pelo basso, a sua crosta, não deixa que sinta os arrepios que sopram dos montes, enfeitados pelos flocos de neve, que já caem pela manhã. O agricultor tira-o do estábulo, monta-lhe todo a instrumenta, e dá-lhe uns toques de verga, para que o burro ande e faça o seu labor. E assim se faz mais este dia, mesmo que pareça que tudo anda, tudo continua parado, sem que se perceba que existe um andamento da vida, um envelhecer, um correr dos dias. Aqui sabe-se que do dia vem a noite, e da noite vem o dia. Existe apenas o dia e a noite, não mais um dia e mais uma noite. E tudo, mesmo parado, acontece.

E naquele momento as luzes apagaram-se. O presépio estava montado há horas. As crianças mexiam-se, apressadas para colocarem aquela e outra bola mais, a estrela no topo e os bonecos no chão, e o pai montou as luzes. Apagou-se o dia, e não se ascendeu a casa. Era hora de ligar aquele momento que tanto se anseia, durante o ano, o momento que eternizará o valor, o sentimento, a sensação. O sorriso foi substituído pelo anseio. O olhar disperso pelo atento, e as mãos uniram-se, rezando que um anjo viesse e protegesse todo o instante. O pai ligou, as luzes brilharam, as faces endiabraram-se e os gritos espalharam-se. Era chegada a hora do Natal. E foi nesta precisa que tudo parou. O tempo, o mundo, os sentidos, o burro que puxava, a vaca que era transportada, o pai que se babava, e a rapariga que chorava. Ainda não tinha chegado o dia mesmo, mas o Natal transformava a ideia de que tudo se separa, na simples noção de que tudo se liga, nem que seja por um dia, um momento onde todos pronunciamos uma data, um termo, um significado. Mas teremos todos a sensação de que afinal neste dia, tudo acontece, ou será afinal que tudo pode acontecer, assim, todos os dias?

José mora na Europa, Maria no Brasil, a vaca na África do Sul, o burro na Ásia e as crianças… em todas as casas, ou será que todos já esqueceram da vossa própria criança?

publicado por opoderdapalavra às 22:48
09 de Dezembro de 2012

 

 

 

Penso nas gotas

Aquelas que caem como pedaços de água, separadas, em pequenas áreas, assim caem, sem que nada as faça parar, assim ficam

Penso nesses dias de chuva, molhados, como o corpo que nos cobre, a pele que se apodera de um calor

E foi tudo num desses dias, sem que nada pudesse prever, sem que nada conseguisse adivinhar

Tu e eu, nós, dois que ficavam em olhares esguios e atravessados, sem nenhum propósito, sem nenhuma intenção, assim estávamos, nas conversas das outras, aquelas que nos separavam

Lá fora, chuva, imensa, sempre na queda, sempre sem que desejasse parar

Cá dentro, eramos perdidas de pensamentos, sem que a vida pudesse andar ou mesmo nos dar a ideia

Horas que passaram, risos, palavras e brincadeiras, danças e músicas sem barreiras

Os lábios afastados, dedos sem estarem molhados, mentes sem querer mexer

Todas se foram, alegres e afastadas de nós, as duas que ficamos, na chuva, naquele momento em que o tempo pareceu querer nos deixar, e deixou-nos

Sentia as gotas tocarem-me, enquanto corria, dei-te na mão a minha pele, que agarraste e me levaste

Vestidos ensopados, interiores lívidos de um toque mais que desejado

Sei que os lábios podem nunca se tocar, sei que as experiências podem nunca acontecer

Sei eu e sabias tu, as duas, assim sabíamos, mas soubemos tudo o que quisemos

Beijamo-nos, sem querer, sem que a vida nos dissesse, simplesmente, façam-no porque assim tem de ser

Levamo-nos ao ardor, mais do que a chuva apaga, sentidas que fomos, não só o molhado que ficamos, tudo o que expressamos

Beijos, toques, peles de fora, tecidos no chão, mãos que cobriam a alma, o lugar onde apenas se nutre o amor

A noite nunca parou, mas aquele tempo ficou, na memória, no coração

O momento em que o foi diferente passou a ser comum, sem que o pensamento ocorresse a dizer que tudo podia ser assim

E agora? Como ficaremos perante a chuva, o sol, e tudo mais que existe?

Só vivendo, as duas, de mãos dadas, pelo recanto do final do dia, que nos trouxe a sensação de sabermos que vivemos, de novo, sem um fim, apenas com um desejo, amoroso e mais do que tremendo sentimento na simplicidade de um princípio.

 

 

 

publicado por opoderdapalavra às 21:55
06 de Dezembro de 2012

 

 

“Porque cai um homem?

O que faz um homem em queda?

Grita?

Sustem a respiração, contraindo os músculos, para mais rápido desfalecer?

Sente o corpo deslizar e faz uma revisão em flashes, de toda a sua breve existência enquanto ser vivo?

Clama aos céus em busca de uma mão qualquer, uma divindade absoluta e suprema, que o segure e salve da queda?

Olha em volta e procura o sentido para o derribamento, para aquele momento decrépito e avassalador?

 O Abismo é uma curta fronteira entre o início do fim e o fim de si mesmo. Dar o passo, perder do pensamento o receio da consequência, não vislumbrar o que fica ou como fica, apenas centrar na efémera passada para o vazio, onde os pés já não sustem o corpo, onde a consciência deixa de fazer sentido, onde o esquecimento ganha sobre as memórias, onde o nome apenas se torna mais um decorativo do que uma identificação.

Procurar respostas na queda é encontrar ainda mais perguntas.

E o corpo?

Qual a sua posição, quando cai?

Qual o seu peso, a sua massa física?

Pernas que se perdem no ar, braços que apenas caem, perdem a força humana, o músculo.

A cabeça é uma caixa de Pandora de pensamentos. De repente, nascem como pequenas sementes, atrofiados durante anos, e que agora brotam, sem nexo, apenas formatando perguntas:

Porque é que teve de ser assim?

Porquê eu?

Que dirão os que esperavam mais de mim?

Haveria outra alternativa?

Como foi isto tudo acontecer?

Porquê Deus?

Merda, porque é que tinha de estar à hora errada no lugar errado?

Listas e listas contínuas de questões que se atropelam na cabeça, procurando explicações para o sucedido, sem que elas possam alguma vez evitar, ou voltar atrás, e corrigir o que foi feito e o que está a acontecer.

E o corpo, cai de costas ou de frente?

Poder-se-á escolher como se cai?

Controla-se o corpo, na luta contra a gravidade, a força centrifuga?

A queda é igual em todo o seu sentido, em todo o seu momento. Nestes ensejos podia haver a sensação de Super-herói, transformar o casaco numa capa multicolor, como nos filmes animados que percorreram a nossa vida de miúdos, onde o corpo flutuaria como uma pena, deixando de ser peso em força, sempre a descer, e conseguir assim controlar, movimentos, escolha de direcções, para cima, para baixo, para o lado esquerdo ou direito, em diagonal, conseguir dominar a vontade do indomável e contornar a perspectiva do destino.

Super-herói seria regressar ao ponto de partida, pegar em todos os que olham o Abismo, sorrir-lhes como sinal de esperança e levá-los para um lugar seguro, longe daquele inferno absurdo, uma casa de família, os braços da pessoa amada que os espera, um sorriso de um filho que os aguarda, os lençóis de uma cama que os resguarda. Ou sair no voo celeste do espaço, atingir as estrelas, e no infinito mudar o sentido do planeta, capacidade de tornar o passado em presente, viver o antes de acontecer sabendo que iria acontecer, mas evitar que acontecesse, e assim prevenir, o embate, explosões, quedas, gritos que ficam perdidos, corpos que não tem posição exacta quando caem, pensamentos que não são mas ao mesmo tempo saem como abelhas de uma colonia ferida, perguntas que se jogam no vazio, flashes de tudo o que ficou para trás.

Esse seria o tempo de Super-herói, o mesmo que conseguiria evitar a queda. E assim, nada teria acontecido, nem mesmo o que seria escrito, nas folhas que brancas caiam, como corpos perdidos, no abismo da verdade.

Como se pode evitar a queda? Escrevendo que não se cai?

Quando se cai não se pode descrever outra coisa, é o firmamento da descida…mas até onde se pode e se consegue descer?"

 

In... Um livro a nascer.

publicado por opoderdapalavra às 23:32
03 de Dezembro de 2012

 

 

 

Levaste-me onde?

Onde o sol se deita e a noite acorda.

E onde fica esse lugar?

No mesmo local onde os teus pés sentem o fresco de um final de tarde, que vem e vai com o seu andamento, aquele nos parece roubar um tempo, o mesmo tempo em que ficamos serenamente sentados a ver as pequenas ondas daquele mar que se estende até o horizonte desaparecer nos limites do céu que tarda a anoitecer.

Não me lembro. Por vezes fico abismado em ficar assim, esquecido. Achas que poderei estar envelhecendo?

Talvez, não sei se estarás ou apenas será a tua memória que, cansada, deseja esquecer-se.

Mas esqueço-me do quê? De mim? De ti?

Nunca nos esquecemos de nós.

Nem quando morremos?

A morte não é um esquecimento, apenas uma pausa que fazemos.

De quê?

Do tempo.

Mas o tempo não pausa…

Talvez pensamos assim, mas ele também para, descansa como velho caminhante, por entre as ruas da lembrança, aquelas onde escrevemos a história e lá fica, como pequenas frases perdidas num traço de caminho que riscamos. Assim fica o tempo, parado no mesmo tempo em que nunca se fez tempo para sabermos dele, o tempo.

Confuso…

Descansa. Aproveita este ar que vem de além, onde o sol já se deita e apenas fica a brisa, a mesma que em breve, nos trará as estrelas, a lua e a noite onde fechamos os olhos, parados ficamos, à espera que tudo volte a caminhar.

Mortos ficamos?

Mortos não, apenas silenciosos.

publicado por opoderdapalavra às 22:55
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