
Quero pensar na minha morte.
Gostava que ela fosse sossegada, no deitar do sol, com o vento a soprar do sul, trazendo-me nos seus odores, os tons de minha casa, da sua terra meio barrenta que desliza pelos longos caminhos até ao mar. Gostava de fechar os olhos, ainda antes de os findar no infinito, e pensar nas árvores que por lá formam uma diáspora das que por aqui se perderam e já partiram. Gostava de sonhar um pouco os animais, deitados a meus pés, fazendo-me uma última companhia. Não quero pessoas perto de mim nesse momento. Nem mesmo as que amo, pois não quero que os minutos sejam inundados de lágrimas sem fundamento, apenas me vou embora, nada mais. Chorar no último segundo de uma vida é dizer que negamos quem parte, perante todo o resto que ficou escrito. As páginas não podem ser agora desfeitas em memórias patéticas, apenas podem ser deliciadas em sentidos tonificantes.
Quando eu morrer, quero que alguns, aqueles que nunca me conheceram, que nunca privaram nas minhas noites de conversas, de pensamentos, aqueles que nunca comeram na mesma mesa em que eu partilhei o fruto do meu pão, aqueles que nem o meu nome pronunciam, esses que apenas me enrolam num manto de pano, transportam-me ao intimo do forno que abrasa o meu corpo e depois levam-me, em cinzas, até minha casa, aquela que só o vento me traz a sua essência, a mesma onde um dia vi que o mundo tinha olhos. E aqueles que nunca presenciaram o meu ultimo suspiro, quero que eles coloquem as pequenas partículas, que se separam como estrelas que cintilam no esplendor do ínfimo lugar do sorriso, junto das árvores que agora repartem o seu lugar com o meu sentir.
Quando morrer quero que todos os que me amam, fiquem com esse sentimento no lugar onde o semearam, que não me recordem, mas simplesmente desfrutem o sabor dos momentos que vivemos juntos, dos sorrisos, dos silêncios, das palavras que nunca dissemos mas que soubemos que dissemos, das músicas que escutamos, dos filmes que presenciamos, das bebidas que deixamos por beber. Quero que se juntem todos, que falem de mim e de todos vós, porque quero que se conheçam, que partilhem essa toda vossa sabedoria, a mesma que partilharam comigo e não deixem que ninguém chore, nem mesmo pela simples desculpa de um corpo estar em falta. Eu não parti, eu estou onde sempre estive, sem ter que vos tocar os dedos, toco-vos o íntimo, o horizonte do vosso pensamento, dos vossos lábios quando prenunciam o meu nome, no olhar quando avistam o meu sorriso no sorriso de cada um de vós, na pele quando sentem o arrepio que por ali passa, pela simples brisa que entra como um intruso e sai como um filho consumado.
Chamem os meus inimigos, juntem-nos a vós, escutem-nos apontarem-me os defeitos, os mesmos que nunca perdi, apenas porque morri. Façam uma reflexão do que ouvem, dêem-lhes um abraço por serem verdadeiros, comam o mesmo pão, partilhem com eles o copo daquele vinho que guardei de propósito para situações especiais e digam-lhes que são sábios, porque não perderam a liberdade dos seus corações. Digam-lhes depois o que deixei como pequenas virtudes, perdidas nos desabafos que fazia quando me perdia nos recantos de vossas casas, sentado e perdido em lágrimas, as únicas que se podem derramar, porque todos os corpos vivem. Mostrem-lhes as palavras que coleccionamos juntos, as sonoridades que desvendamos unidos. Comam todo esse festim com a altiva a altruísta fortuna de saberem que no dia seguinte, conhecem-se mais e melhor e que iram continuar a fazer o que fazem melhor, um mundo mais rico e mais feliz, porque o meu já o é, apenas porque sei que entre vós, tive a simples sensação de sentir o que da Vida levo melhor, que afinal nunca deixamos de viver, e que o fim é sempre o princípio de tudo.