podes pensar, podes falar, mas tudo o que escrevas tem o poder de ficar.
10 de Setembro de 2012

Gostava de iniciar este texto, partilhando dois pequenos excertos, um de um livro de Carlo Strenger, “O Medo da Insignificância”, e o segundo, o muito conhecido “Alegoria da Caverna” de Platão, na sua obra A República.

Primeiro Carlo Strenger:

“Não estamos condenados a viver em visões de mundo que aceitamos acriticamente com base na sua popularidade ou na sua apresentação, e existem modos de viver no seio das visões de mundo que são mias responsáveis. Resumidamente, o meu argumento será o de que, na verdade, existem maneiras de analisar criticamente as visões do mundo. Embora não tenhamos a hipótese de não ter uma visão do mundo, um quadro de referência que nos forneça sentido e uma defesa contra a ameaça da insignificância, temos a escolha de investir cuidadosamente na nossa visão do mundo.

(…) Trata-se de um apelo para regressar a uma visão clássica da importância do investimento intelectual nas nossas visões do mundo, uma concepção que quase desapareceu nas últimas décadas de frenesim. As grandes tradições filosóficas de todas as civilizações superiores, da China à India e à Europa, defenderam que os seres humanos se podem libertar das amarras que, de alguma maneira, lhes foram impostas pelo acaso do nascimento. Não estamos condenados a viver dentro dos limites de visões do mundo que não escolhemos, mas que foram inculcadas nas nossas mentes através da nossa educação quando éramos mais novos.”

 

Agora, o texto de Platão, onde Sócrates, a personagem principal que Platão usa para dar voz às suas ideias, conta o seguinte:

“(…) imagina a nossa natureza, relativamente à educação ou à sua falta, de acordo com a seguinte experiência. Suponhamos uns homens numa habitação subterrânea em forma de caverna, com uma entrada aberta para a luz, que se estende a todo o comprimento dessa gruta. Então lá dentro desde a infância, algemados de pernas e pescoço, de tal maneira que só lhes é dado permanecer no mesmo lugar e olhar em frente; são incapazes de voltar a cabeça, por causa dos grilhões; serve-lhes de iluminação um fogo que se queima ao longe, numa eminência, por detrás deles; entre a fogueira e os prisioneiros há um caminho ascendente, ao longo do qual se construiu um pequeno muro, no género dos tapumes que os homens dos “robertos” colocam diante do público, para mostrarem as suas habilidades por cima deles… Semelhantes a nós… Logo que alguém soltasse um deles, e o forçasse a endireitar-se de repente, a voltar o pescoço, a andar e a olhar para a luz… que julgas tu que ele diria, se alguém lhe afirmasse que até então ele só vira coisas vãs, ao passo que, agora estava mais perto da realidade e da via da verdade, voltado para objectos mais reais? Portanto… voltar-se-ia, para buscar refúgio junto dos objectos para os quais podia olhar, e julgaria ainda que estes eram na verdade mais nítidos do que os lhe mostravam?”

 

A alegoria da caverna constitui uma das imagens filosóficas ocidentais mais conhecidas do mundo. Junta-se a muitas outras, dos vários cantos do mundo, como a viagem de Buda até à iluminação, com Siddhartha a ser o protegido da verdade. Aliás, este, através da confrontação com o sofrimento humano, passa por uma transformação que o leva a compreender que o modo como até ai tinha visto as coisas, era tudo uma ilusão.

E assim tem também vivido grande parte da sociedade ocidental. Vivemos tempos de sofrimento, tempos de angústia, onde nos sentimos encurralados numa espécie de arena de forças, onde de um lado os gladiadores (leia-se políticos) nos empurram para o outro lado onde estão os animais sedentos de sangue (leia-se os senhores do dinheiro). Sente-se a impotência do pensamento, de conseguir de facto, dar-se a volta “às coisas”.

Fomos educados, nas últimas décadas, a não pensar. E porquê? Uma sociedade adormecida, é como nas histórias de fantasia, que habitualmente escutavam em pequenos, era necessário adormecer o dragão, para que este não colocasse em perigo as jornadas heróicas, só nas histórias claro, que as personagens iriam efectuar. E foi esta a fórmula mágica que os políticos, de todos os quadrantes, desde a esquerda à direita, encontraram para adormecer o povo, tal como fizera já no passado, a religião (e ainda o faz no presente), tornando o povo ignorante, fazendo-o crer num tipo de conhecimento limitado e circunscrito. Todos fomos educados, socialmente e intelectualmente, a ficarmos prisioneiros de dogmas e doutrinas estigmatizadas, que nos controlam o pensamento e por consequência, as acções.

Por isso, cremos que as nossas visões do mundo são limitadas, que não conseguimos efectuar mudanças, que precisamos constantemente de ajuda para sobrevivermos, ao que apelidamos de “depressão social”. E enquanto andamos deprimidos, e à procura de curas, os políticos, os religiosos, os senhores do dinheiro, fazem do povo o seu fantoche preferido.

As falsas curas passam por consumismo desmesurado, créditos para tudo, facilidades “perigosas” para aquisição, a ideia de que o material confere poder às pessoas sobre as outras. Construiu-se uma sociedade de egoísmo, distancias, e acima de tudo, ignorante e intelectualmente enfraquecida. Gosta-se de programas de televisão onde se possa “cuscar” e delirar com as vidas alheias; vendem-se revistas “cor-de-rosa” aos milhões onde se conta todos os pormenores, os verdadeiros e os que não o são, sobre os contos de fadas ilusórios e profundamente falsos; criam-se heróis em atletas sem o mínimo de inteligência ou mesmo conhecimentos, e que são adorados como deuses do Olimpo, alimentando uma máquina trituradora de bens financeiros e obscuros… pior, para-se quase um país para se discutir a causa da infelicidade de um desses atletas… e pior ainda, vivemos num país onde a sabedoria não é valorizada, num país onde um desempregado com mais de 40 anos de idade, é quase uma espécie de “leproso” que já nada serve às empresas, e porquê? …porque já pensa.

Estamos à beira do caos. E pensamos: não posso, sou incapaz de mudar a minha visão do mundo.

Errado.

A vida deu-nos um cérebro para pensar, para desenvolver espíritos críticos e aprender com uma deficiência natural de todos os seres: o erro.

Todas as tradições filosóficas exortam-nos a não nos conformarmos com as limitações que nos são impostas pelo acaso do nascimento e a passar pelo doloroso esforço de adquirir o conhecimento necessário numa visão de mundo tão próxima da verdade quanto possível.

É possível adquirir e assimilar outras visões do mundo, a sua própria visão, mas não limitada, mas sim dentro de um panorama ilimitado de conhecimento. Dá trabalho? Sim, mas não se vive constantemente na ignorância da existência.

Exemplo: quantos de vós leram, pelo menos uma vez, um panfleto eleitoral de um partido? Quantos de vós já pararam para pensar como é a vossa visão sociopolítica? Quantos de vós, tem de facto, uma visão altruísta para ajudar a vivermos todos, num mundo melhor?

Pois, por isso se vive numa sociedade adormecida, por isso vivemos num país deslocado, sem reacção, sem que uma acção sequer surte um efeito. Tudo é controlado pelo poder político, todos os partidos e associações sindicais e outras que representam as mesmas ideias dos partidos, sem excepção, que doutrinam ideias de agradar, ideias fáceis de manipular, ideias que afinal apenas desejam encurtar e limitar o pensamento do povo. Exemplo: sempre fui contra e absolutamente contra a intervenção das ditas “Jotas” nas eleições das Associações de estudantes, é aqui que o monstro começa a tomar forma.

Apenas vos digo, cada um de vós pensa, não logo existe, mas sim pensa, porque existe. Temos um dever essencial, antes de qualquer direito, o dever de aproveitar a oportunidade única de vivermos, o dever de corresponder com a oportunidade que a Vida nos proporciona, e isso é inegociável.

Aproveitem o vosso dever para desenvolverem-se intelectualmente, porque as revoluções acontecem através do pensamento e não da espera eterna por Sebastiões, que nunca aparecem, nem mesmo nas manhãs de nevoeiro. Acham que todos os que escreveram, a bem, a História, esperaram que outros lhes fizessem o trabalho?

Termino com uma ideia, mais uma, de Carlo Strenger:

“ A minha experiencia pessoal é a de que sair da caverna platónica é um processo que nunca termina e que devemos estar sempre preparados para repensar e possivelmente abandonar as crenças, por mais estimadas que possam ser. E embora este processo possa, muitas vezes, ser doloroso, também pode ser uma das actividades mais sustentadas e mais frutíferas em que os seres humanos se podem envolver…”

Viva a Vida sem adormecimentos.

publicado por opoderdapalavra às 19:36
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