podes pensar, podes falar, mas tudo o que escrevas tem o poder de ficar.
31 de Julho de 2012

  

 

 

Quero continuar um louco. Mas não aquele que retira de si a vontade de pôr um ponto final nos outros. Não, esse não. Gostava de ser um daqueles loucos que escapam às mãos terríveis do socialmente idealizado, do politicamente correcto, da visão arrebatadora dos que me olham e desenham em mim um futuro pré-destinado, sem tentarem perceber se será desejo meu construir, de facto, um futuro já escrito à nascença. Não quero. Não quero ser o medico que não sabe como se trata, ou o juiz que não percebe como se julga, ou o engenheiro que nem sonha como se constrói, ou mesmo o jornalista que nem pensa como se dá a noticia. Não quero ser o marido de sorriso nos lábios e murros na casa, nem mesmo o pai que passeia os filhos como autômato estereotipo, ou  então aquele empregado bem comportado, lambe botas comum que procura sempre um sim ao superior e um não ao inferior, esperando que a dita promoção nunca consumada, possa um dia, talvez nunca, vir.

Quero continuar o louco que sempre fui, aquele que se desvia dos caminhos comuns, quero correr nu pela quintas e aromatizar os corpos despidos das mulheres que me enfeitiçam, ou da mulher que me ama como o louco que sou. Quero andar em silencio, pelas ruas preenchidas por um barulho ensurdecedor de gritos na escuridão, que apelam à ajuda, ao desespero por um pingo de loucura, à fuga desta sociedade inundada de paradigmas e de tabus. Quero discutir política sem ser político, quero falar sobre sexo sem ser preconceituoso, quero escrever sobre merdas que nunca poderão ser lidas pelos que nunca saberão ser loucos.

Porque a loucura é a ilha misteriosa onde habito os dias, onde encontro o céu azul, onde vejo o sol nascer e deitar-se na simplicidade de um olhar, onde toco as plantas que se reproduzem como árvores sem fim, onde me deito com os animais que respeito. Neste lugar, nesta loucura não sou livre, já nasci livre. São presos todos os outros, porque aqueles que tanto procuram a liberdade, serão eternos prisioneiros dessa busca por algo que nunca os abandonou, apenas foi adormecida pela visão e deturpação maléfica daqueles que, para venderem almas às trevas do pensamento, sugerem que ninguém será livre enquanto o povo não for libertado. Que loucura esta que emprego no meu corpo. Que loucura esta que banha o espírito.

Mas, e agora que deparo com o abismo, penso, afinal, quem será mesmo o louco?

Aquele que procura erguer-se da lama que o amarra, ou aquele que se deixa afundar na bosta que defecou no pensamento?

Serei assim, o louco ou não que se atira pelo penhasco e abraça o vento que vem e me leva pelo infinito dos que sonham um dia... virem a ser loucos, assim, também. 

publicado por opoderdapalavra às 22:55
23 de Julho de 2012

 

 

 

 

Já não conheço ninguém na minha rua.

São anos, aqueles que me separam de quando esta rua, a nº 7 da cidade, tinha apenas dois prédios, alto betão de estendais ripados em sete andares. Tinha a mercearia da Sra. Rita, a quem pedíamos uma pastilha elástica, sempre que vínhamos da escola. O café do casal Pereira, ela ostensivamente carrancuda dos dentes e ele sempre um gentleman com todas as senhoras que por ali paravam a tomar um chá. Pudera, dormia com algumas delas, mulheres separadas dos maridos que haviam partido para a emigração, em busca de outros dinheiros. Havia sempre o Sr. Afonso, um polícia gordo, com um bigode a arrematar a boca e um cabelo repleto de caspa, que cobria os ombros, como neve que cai, levemente. Havia as crianças que corriam como loucas, gritavam como doidas, jogavam à bola e caiam no chão, derrapando e rapando pele até o sangue pintar a rua. Havia risos e gargalhadas, brincadeiras sem fim, perigos que estavam longe dali. Havia as horas tarde, sem que a noite parecesse querer adormecer, e as manhãs soalheiras, de calções amarrotados, piolhos vesgos que ainda despertavam e meia dúzia de remelas que se colavam aos sobrolhos, como parte do próprio olho. Havia odores que já dormiam connosco, mas que nunca nos separaram dos amigos que vinham e saltavam, à pedrinha, ao saltimbanco, às árvores e jogavam o berlinde pela estrada fora, sem que o carro viesse e nos levasse até ao fim das feridas.

Nunca nenhum de nós foi levado ao psicólogo, ao doutor ou ao psiquiatra, porque estávamos irrequietos, ou porque nunca parávamos de falar, brincar e desarrumar a rua. Nunca fomos levados por nenhum homem mau, daqueles que vem com um enorme saco e nos levam para longe, para onde as florestas são gigantescas e repletas de fantasmas. Nunca nenhum reprovou, sempre fomos bons estudantes, sabíamos que aprender era maravilhoso, desde a lua que nos circunda, até ao número mais ínfimo que possamos imaginar. Nunca nenhum de nós foi malcriado com os mais velhos, com quem riamos devotos pela alegria que a família, aquela que a rua sempre engalanava, mantinha.

Mas passaram os anos. Mais prédios vieram, mais pessoas, mais carros, e mais solidão invadiu este lugar. Já não vejo as árvores, nem o jardim, ou mesmo o campo, essa planície onde perdíamos as vistas, pelo corredor do rio. Já não vejo o céu, coberto pelos andares sem termo daqueles enormes edifícios que agora tem pessoas sem mais fim. Ninguém se cumprimenta, nem um olá conseguem dizer. Ninguém mais sorri, nem mesmo um olhar conseguem fazer. Estão todas tristes, fechadas nos seus mundos, aqueles que nada existe, apenas o horizonte da sobrevivência, do egoísmo, do pisar o próximo para não afectar o caminho, ou o pior dos pensamentos, querer apenas ter, obter e deter, tudo o que de material existir, para assim conseguir o poder.

Esta rua está velha, suja, cuspida de lixo que inunda a vista. Esta rua não conheço. E daqui que a vejo, desta velha janela abandonada, eu solto o meu suspiro, o ultimo, daqueles que apenas se vão no ar, na saudade de um dia, poder voltar a ter a rua que um dia existia.

publicado por opoderdapalavra às 22:34
15 de Julho de 2012

     

 

 

 

 

Naquela manhã fui buscar o antigo carro de rodas, que havia esquecido nos fundos da garagem. Nem me recordo, ainda, porque o deixei ali, perdido no entrelaçado de teias, aranhiços que assim que apanham um pedaço de abandono logo o preenchem com fios e refinadas liças. Tento encontrar razões para largar o que costuma fazer parte do meu passado, mas nunca consigo desmontar o pensamento da memória. Ele é demasiado pesado para se desfazer como qualquer coisa depressível, mas talvez seja essa a piada.

Mas falava do carrinho. Montei-o quando tinha uns 12 anos, tábuas rasas, quatro rolamentos, e uma corda que guiava um pau, qualquer coisa como um volante. Costumava percorrer ruas abaixo, sempre a descer, como uma vertigem descontrolada, sem domínio nenhum. Cheguei a atropelar um velhote, que ficou sentado no meu colo, olhando-me com um ar petrificado no espanto e na incerteza de estar ainda vivo, ou não. Foram imensas as histórias que vivi com este carro. De facto, mais uma vez, as lembranças levam-me em viagens, mas ficam sempre os factos, aqueles que nunca se alteram, lembre-me ou não deles.

Chamaram-me da casa. Era hora do adeus. Tudo chega e tudo parte. Sempre que me esbarro com o sentido inato do tempo, fico com a melancólica sensação de que o meio foi sempre, e sempre será, insatisfeito. Poderia até preenche-lo com meia dúzia de frases, apenas para o completar, ou dar a ideia de satisfação quanto a esse complemento, mas não, o princípio das coisas é demasiado isento de subjectividades, e o fim, bem esse, é o supra sumo da objectividade, acabou e ponto final. Tal como se termina a frase, o paragrafo, o capitulo, o livro, tudo. Mas e o meio? O entretanto, o intervalo entre estas duas partes? Do que depende este período? De nós? Do que possa fazer ou deixar de?

Despedi-me naquela manhã soalheira, sem temperatura ou sons que pudessem deixar recordações, mas ainda assim, com a imagem de ser uma manhã de recuperar um carro de rodinhas, em que um dia fui feliz, mas que nem sempre me recordo de como o fui, talvez por isso mesmo, que a felicidade não é um simples sorriso, mas um estado, em que latejamos a nossa consciência com o bater da nossa vontade… de lembrar.

Adeus meus queridos, quem me ajudaram a construir memórias, mas a quem me roubou o sentimento de as recordar sempre vivas, e me despertou para o sabor, de que mesmo as memórias, podem morrer, ter um fim… objectivo.

 

 

 

 

 

 

publicado por opoderdapalavra às 23:11
10 de Julho de 2012

 

 

 

 

 

“Não sei falar.

Pelo menos não sei falar como aqueles que se juntam em duas patas, que erguem outras duas no céu, suspendendo-as no ar, como as asas dos pássaros que habitualmente brinco pelo fim do dia. Gostava de poder falar a línguas deles. Assim conseguiria dizer-lhes que parem. Não consigo mais os pontapés, os murros, as cuspidelas ou mesmo as palavras que não entendo, mas que desconfiguram a minha visão. Certas manhãs apetece-me chorar, mas não sei como se faz. Não sei se tenho lágrimas que consigam demonstrar o que vida tem dentro de mim, como a dor que me arrasa o pensamento…”

“Mas porque não gritas?”

“Achas ser fácil gritar? E quem é que me vai escutar? Tu?”

“Eu estou aqui.”

“ Sabes, gostava de ter sido um anjo. Daqueles que protegem, que não fogem como cobardes, que não se escondem como meras sombras. Gostava de ser daqueles que se deixam estar, sempre ao lado dos que precisam, amparar-lhes o sofrimento, abraçá-los na tristeza, dar-lhes a mão no crescimento, sorrir quando eles sorriem, fazer a festa quando eles festejam. Gostava de apenas olhar por todos os que necessitam de uma companhia, uma simples companhia.”

“ Mas tu és um anjo.”

“Porque dizes isso?”

“Porque sonhas, porque lutas, porque como dizes, não te escondes, nem foges.”

“ Mas ser anjo é ser assim, mesmo que se sofra?”

“ Ser anjo é ser-se fiel a um propósito de bondade, de real fidelidade à Vida. Tu estás aqui, sempre viva, mesmo tendo sofrido o que sofreste, lutaste, como heroína das histórias mais belas da Grécia Antiga, quiseste viver, quiseste combater e agarrares-te à vida, por todos aqueles que te ajudaram… esqueceste-te dos que te fizeram mal, e docemente, entregaste-te aos que te amaram, mesmo que por pouco tempo… mas no Amor o tempo não existe, ele é apenas um mero instrumento de distracção…e as pessoas que te ajudaram, amaram-te e tu, ao lutares pela vida, amaste-as… tornaste-te um anjo…”

“Não entendo como me torno um anjo dos que protegem, apenas lutando para sobreviver…”

“Porque ao lutares para viveres, quiseste lutar para continuares ao lado dos que te mostraram uma luz, um carinho, um Amor… e tu querias proteger esse sentimento, vivendo…”

"Posso fazer um pedido?"

"Claro..."

"Todos, como eu ou como o gato da porta ao lado, ou do esquilo e do cavalo, ou do leão e da foca, ou mesmo como o pássaro ou o peixe... todos nós podemos ser anjos?"

"Sim..."

"Mas também os humanos que de facto amam..."

" E os que não amam?"

"Ajuda-os a descobrirem, mesmo que por segundos, o que de facto é ser-se amado... para um dia também poderem ser anjos..."

Contam, que no alto dos céus mais infinitos, estrelas se acendem todos os dias, e que no meio delas, brilhando intensamente, uma de nome Campera, se destaca, entre muitas iguais, pelo facto de se ter tornado um anjo.

publicado por opoderdapalavra às 22:03
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