podes pensar, podes falar, mas tudo o que escrevas tem o poder de ficar.
29 de Fevereiro de 2012


Nem sempre prestamos atenção às pessoas que nos rodeiam e, mais raramente ainda, procuramos saber qual é a sua história – será que nos falta ousadia?
Vinda de muito longe, Djuku é uma dessas pessoas; aqui está um pedaço da sua história.

1

 

No exacto momento em que parte, Djuku apercebe-se de que é a primeira vez que deixa a sua aldeia.
Desde o seu nascimento até hoje, Djuku viveu sempre rodeada pelos seus na pequena aldeia à beira da savana. Ela conhece cada recanto. E ninguém lhe é ali desconhecido. Do mesmo modo, todos os aldeões sabem quem é Djuku:
— Djuku? É aquela que sabe assobiar, melhor até do que um pássaro!
— Quando há por aqui almoço de festa ou de cerimónia, é sempre Djuku quem os faz: ela conhece todas as receitas e até inventa mais!
É verdade que Djuku cozinha galinha como ninguém, mas hoje Djuku vai-se embora. Decidiu partir para longe, muito longe. É que aqui na aldeia, apesar dos amigos, apesar das cerimónias, não há trabalho suficiente.
Fez-se à estrada e fixa os olhos na linha do horizonte para não se voltar, para não chorar. Bem, vamos lá a ver, partir assim é demasiado duro. Então, uma última vez, e antes que a aldeia desapareça na desordem das ervas altas, ela olha-a. Olha-a durante tanto tempo e tão apaixonadamente que todas as coisas onde o seu olhar toca entram no seu corpo.
Agora sim, Djuku pode pôr-se a caminho.
A velha guitarra de Quecuto entra no seu corpo. E com ela todos os perfumes das músicas tantas vezes ouvidas.
A palmeira inclinada e o embondeiro do largo entram no seu corpo.
O caldeirão de Nhô-Nhô entra no seu corpo.
A casa de Pepito entra no seu corpo, apesar do seu tecto desgrenhado.
A barca e as redes de pesca de Benvindo que repousam sobre a areia entram no seu corpo. Sente que todas estas coisas estão dentro dela firmemente atadas como carga de um navio. Sente que, a cada passo dos muitos que dará, a aldeia estará consigo.

2

 

Durante a viagem de vários dias, as descobertas sucedem-se e deslumbram Djuku. Pouco a pouco, ela esquecerá a aldeia.
Atravessa imensas planícies acariciadas por ventos amistosos e cruza montanhas azuis onde chega a pensar que morrerá de frio. Incontáveis rios e ribeiras fazem-lhe companhia no seu périplo e, enquanto caminha ao longo das margens, as águas tumultuosas e murmurantes contam-lhe histórias fabulosas.
Muita gente se empurra na berma da estrada para a ver passar. Alguns aconselham-na a fazer meia volta, pois é uma grande loucura. Outros, pelo contrário, encorajam-na, oferecem-lhe pequenas prendas, que ela se apressa a dar por sua vez, mal entra numa nova aldeia.
«Convém ir ligeiro quando se viaja», diz ela de si para si, e logo acrescenta: «Gosto destes dias, gosto destes perfumes novos.»
Pela primeira vez desde há muito tempo, Djuku sente-se extremamente feliz, pondo um pé à frente do outro com uma espécie de bebedeira. Pressente que a sua viagem chegou ao fim quando certa noite viu desenhar se no horizonte uma barreira sombria de grandes edifícios iluminados aqui e ali por pequenas cintilações.
— Eis a cidade que eu procurava — disse Djuku simplesmente.
Decide que só entrará no dia seguinte.

3


Pela manhã, muito cedo, Djuku entra na cidade quase deserta àquela hora.
Alguém, todo vestido de amarelo, lava as ruas com grande quantidade de água. Um pouco mais adiante, um condutor de autocarro sem passageiros assobia alegremente enquanto faz manobras. Djuku ziguezagueia na calçada com a impressão de que caminha sobre terreno virgem.
Não presta atenção à grande mosca verde barulhenta que engole com uma boca gigantesca os últimos pedaços de noite, até que esta, depois de muito mastigar, se atira a ela. Djuku vacilou e quase caía se antes uma vaga de pessoas, vindas de lado nenhum, não a levasse em uma louca cavalgada. São milhares de homens e de mulheres que se precipitam para os seus locais de trabalho. Viram à direita e à esquerda, sem nexo, embrenham-se nas entranhas da terra para logo saírem mais adiante, sobem e descem escadas, corredores, ruas e depois avançam a golpes de gritos e assobios, de buzinas e apitos ululantes.
— É uma floresta de gente em marcha! — exclama Djuku, que nunca tinha visto tanta gente na sua vida.
Desta vez ninguém lhe oferece presentes, nem lhe pergunta de onde vem.
Djuku deixa-se levar ao sabor da corrente durante toda a manhã, incapaz de resistir, sacudida por uns, empurrada por outros, sem saber para onde ir. Ao meio-dia, quando a corrente diminuiu de intensidade, Djuku, com o corpo extenuado e os pés doridos, consegue escapar-se e vai encalhar um pouco adiante no banco de uma praça.
— Por pouco não me afogava nesta maré! — suspira Djuku massajando os tornozelos. — Ninguém me tinha dito que havia transumâncias.
Lentamente retoma o fôlego e passeia o seu olhar, tentando descobrir onde acabou por cair. É uma pequena praça, tendo ao centro um relvado careca, com um trio de árvores enfezadas e um cão minúsculo que cabriola entre uma e outra para as aspergir. A toda a volta estão casas de fachada rosa-cinza e umas quantas pequenas lojas.
Djuku repara que na montra de cada uma há um anúncio pendurado. Aproxima-se da loja mais próxima e lê: «Procura-se aplicadora de champô em cães mimados. Pede-se C.V.»
— Isto não é para mim — diz Djuku — nem sei o que é!
A loja seguinte desejava encontrar rapidamente uma «comediante para duas tragédias» e o terceiro anunciava: «Uma profissão brilhante? Torne-se lavadora de azulejos.»
— É demasiado arriscado. Para mim não serve! — suspira Djuku.
A quarta loja procurava uma «operadora-de-máquina-electricista a meio-tempo para grandes reparações em brinquedos delicados».
— Oh, isso é muito complicado. Também não é para mim — diz uma Djuku já desolada.
A quinta loja é um restaurante chamado BARRIGA DA BALEIA, e um cartaz escrito à mão explica: «Boa cozinheira? Entre depressa!»
— Claro que vou entrar! — exclama logo Djuku — isto sim, é para mim.

4


Mal Djuku passa a soleira da porta do restaurante, é acolhida por um pequeno homem bonacheirão, o patrão, o senhor Isidoro, que quase logo a aceita como cozinheira.
Quase logo, porque lhe pergunta antes se ela sabe «distinguir o sal da pimenta, é que, sabe, tenho clientes que não são nada fáceis!». E diz-lhe em seguida, mostrando o menu:
— Bem, está tudo aí, não é complicado e a partir deste momento a chefe da cozinha é você!
— De resto — corrige-se ele — o chefe do aprovisionamento é você também, e o chefe da condimentação é também você, além, é claro, das idas ao mercado.
Nas semanas que se seguiram, ao ver tantas vezes o senhor Isidoro junto à porta do restaurante, Djuku compreendeu o ar de satisfação dele ao dizer-lhe aquilo tudo. O senhor Isidoro adora fazer a sesta na BARRIGA DA BALEIA.
Djuku aproveitou este cargo para fornecer a cozinha de novos condimentos: coentros, cominhos, funcho, menta, alecrim. E para modificar os pratos, cozinhando ou temperando de maneira diferente as carnes, os legumes, os peixes. Nem toda a gente gostou.
— Socorro, tenho a garganta a arder — gritava um cliente de vez em quando.
— Querem envenenar-me, chamem a polícia! — vociferavam outros.
Mas o senhor Isidoro não se deixava convencer, e nada dizia, até porque a maioria dos clientes aprovava a mudança e Djuku conseguia realizar pratos suculentos.
Uma nova vida começava para Djuku na BARRIGA DA BALEIA.

5

 

Se alguma coisa atraiu a atenção do senhor Isidoro foram as mãos de Djuku. Aliás, ao longo dos vários meses que Djuku passou a trabalhar na BARRIGA DA BALEIA, as coisas resumiam-se a isto: para ele e para os clientes habituais do restaurante, Djuku não era mais que duas mãos, uma esquerda genial, uma direita fabulosa.
Convém saber que, durante o dia, Djuku não aparecia na sala do restaurante, e como ela vinha trabalhar de manhã cedo, só saindo muito depois do fecho, ninguém sabia ao certo quem ela era, como ela era. Só as suas mãos eram conhecidas do «público».
É que era um espectáculo, como dizer, real, ver aquelas mãos elevando um prato através da abertura que separa a cozinha da sala do restaurante. Djuku, numa palavra atirada ao criado de servir, anunciava o prato, mas a sua voz é demasiado doce para ser ouvida. Em palco estavam apenas as suas mãos.
Os clientes que pediam, fosse um qualulu, fosse uma galinha com molho de amendoins, passavam os minutos seguintes de olhos postos na abertura. Não eram poucos aqueles, mais nervosos, que chegavam a roer as unhas.
— Deviam ter pedido também uma entrada — aconselhava-os sempre o senhor Isidoro.
As mãos de Djuku são as suas ferramentas e o seu tesouro. Não serão o que podemos chamar belas: a palma é larga, os dedos finos de tamanho médio e bem assentes, as unhas compridas tratadas. A pele neste lugar do corpo parece um pergaminho e, no caso dela, é riscado por pequenas cicatrizes (talvez o preço de uma distracção no momento da aprendizagem).
É mesmo a graça dos seus gestos, a agilidade, o que encanta os clientes da BARRIGA DA BALEIA. As mãos dançam ao redor dos pratos até ao momento da entrega. Acontece às vezes descansarem na borda da abertura. Estarão a contemplar, satisfeitas, a vida ruidosa da sala do restaurante? Ou será que esperam alguém ou alguma coisa? É difícil saber. Elas partem sempre de súbito, saltitantes, para se agitarem ao redor dos fogões.

6

— Uau, este frio gela-me as mãos e o senhor Isidoro que nunca mais vem! Deve estar na cama, tudo lhe serve de pretexto para se lá meter! — constata Djuku divertida ao abrir as portas da BARRIGA DA BALEIA.
Não que precise do seu patrão para pôr em andamento a cozinha, ela já conhece o ritual. De imediato, deita mãos ao trabalho, pois tem muito que fazer. Acende os fornos, tira os alimentos da arca congeladora, e logo os seus dedos se afadigam, descascam legumes, amassam as pastas, preparam os caldos, confeccionam as sobremesas. Durante toda manhã, Djuku não terá um minuto de descanso, mas assim que, aí pelo meio-dia, chegarem os primeiros clientes, tudo estará pronto. Nestas alturas, a aldeia está em bem longe. Djuku nem sonha.
Ao meio-dia dispara o tiro de partida! Todos os clientes afluem para almoçar. A confusão ameaça. Mas a comandante Djuku está ao leme e a BARRIGA DA BALEIA não aderna e continua a sua rota.
Segue-se a calma da tarde. Djuku conta com um repouso bem merecido. Mas, com cada vez mais frequência, é assaltada por antigas imagens, incómodas como crianças turbulentas mantidas demasiado tempo à mesa e que têm necessidade de esticar as pernas.
«Antes», pensa, «todos sabiam quem era Djuku, agora eu sou uma sombra que passa, que vai para o trabalho de manhã e que regressa à noite. Aqui ninguém me conhece, sou uma sombra sem história.»
Olha à sua volta e o que vê fá-la sorrir: ela imagina a aldeia, a savana, os campos de arroz, o sol quente na sua pequena cozinha!
«Por que raio não será isso possível? Um dia», pensa, «será preciso que o que eu vivi se case com o que eu vivo, que o restaurante fique noivo da aldeia.»
Uma ideia engraçada que a fez, primeiro, rir e, depois, chorar.

7


É noite. O restaurante está fechado. Um a um, todos os clientes se foram. Até o senhor Isidoro já foi para sua casa. Djuku ficou sozinha. Sentada, olha as palmas das mãos, a geografia das rugas da sua pele, talvez procurando um caminho a seguir.
Tudo está calmo na cozinha. Mas Djuku ouve um barulho imenso. Os objectos, acolchoados no interior dela, estão ali, agitados, barulhentos, e querem escapar a qualquer preço.
«O vosso lugar não é aqui», suplica Djuku, «deixem-se estar sossegados.» Eles não queriam ouvir nada e continuaram com a sua terrível algazarra. Então, uma vez mais, Djuku conta a historia a si mesma. Em voz alta, invoca a aldeia e as suas gentes, o calor que faz quando o Sol atinge o seu zénite, o odor do carvão de madeira, do peixe que foi posto a secar nos telhados das casas, o da poeira que tudo invade.
Absolutamente decidida, entra no restaurante.
A sua memória, tão viva, apazigua-se a pouco e pouco. Quando tudo parece voltar a estar em ordem, que de novo nela se instalou a paz, Djuku deixa o restaurante e vai para casa descansar.

8


Quando Djuku cozinha, tudo o resto perde importância.
Os clientes na sala bem podem falar alto e grosso, a rádio e a televisão bem podem armar zaragata, que Djuku consagra-se à sua tarefa de tal maneira que só ouve as encomendas do criado de servir. Ela é como uma rainha no seu reino e cada uma das suas coisas, marmitas, panelas, pratos, talheres, especiarias, pratos ou fogões, a protegem da confusão, mantendo-a no centro daquele forte, a cozinha. Nem mesmo o senhor Isidoro pode ali entrar.
Certo dia, contudo, um estranho projéctil atingiu Djuku em cheio: era uma palavra.
Uma palavra que havia escapado da boca do apresentador de televisão. Djuku deixou cair a batata e a faca que segurava nas mãos e deixou-se literalmente invadir. A palavra cresceu nela, ganhou balanço, fez-se furacão, explosão. Acabou por inundá-la, deixando apenas uma casca vazia, desorientada, frágil.
Djuku entrou na sala e dirigiu-se, hipnotizada, para a televisão. Ao vê-la de lágrimas nos olhos, os clientes calaram-se todos, olharam uns para os outros e interrogavam com esse mesmo olhar o senhor Isidoro.
Este, sentado no lugar do costume, perguntou com voz inquieta:
— Está tudo bem, Djuku?
Ela não respondeu. Assoou o nariz com o punho. Soluçava.
«Deve ter queimado os dedos», pensa um cliente.
— Minha senhora, a caldeirada estava fa-bu-lo-sa, devorei-a todinha! Veja aqui o meu prato — diz-lhe outro.
— Mas o que é que se passa hoje? — perguntaram de súbito a uma voz todos os clientes.
Pela primeira vez desde a chegada de Djuku, os clientes da BARRIGA DA BALEIA viram- na e olharam-na verdadeiramente.
A palavra, insignificante para eles, era o nome da aldeia de Djuku.

9


O senhor Isidoro agarrou-a pelos ombros e fê-la sentar-se.
— Seca as tuas lágrimas, Djuku. Diz-nos o que te aconteceu.
Aconteceu então o seguinte. Djuku, que já havia retomado o fôlego, começou a contar e os objectos que estavam há tanto tempo dentro dela saíram da sua boca para virem, à vez, pontuar o seu discurso: a partida da aldeia, a viagem, a chegada à cidade, e à BARRIGA DE BALEIA, o trabalho e a sua grande solidão. Os clientes e o senhor Isidoro apanhavam os objectos à medida que eles surgiam.
A velha guitarra de Quecuto saiu do seu corpo com os perfumes das músicas tantas vezes ouvidas, e um cliente apanhou-a para a tocar.
A palmeira inclinada e o embondeiro do lago saíram do seu corpo e um cliente pegou neles e foi pô-los junto à entrada do restaurante.
O caldeirão do Nhô-Nhô saiu do seu corpo e um cliente colocou-o no meio da sala.
A casa de Pepito saiu do seu corpo e os clientes apossaram-se dela para arrumar a sala.
A barca e as redes de pesca de Benvindo saíram do seu corpo e os clientes colocaram-nas à sombra do embondeiro.
Sim, logo em seguida Djuku sentiu-se aliviada e em paz. Viu as coisas que estavam nela firmemente atadas como carga de um navio partilhadas por todos. Percebeu imediatamente que a aldeia tinha desposado o restaurante.
Agora toda a gente conhecia a história de Djuku.
— Não podemos ficar aqui! — disse alguém.
— É preciso festejar isto — disse um outro — como na aldeia!

Nota ao leitor

Depois deste famoso dia, a divisória que separava a cozinha da sala do restaurante foi derrubada pelo senhor Isidoro com as suas próprias mãos.
Leitor, se tiveres vontade de ir à BARRIGA DA BALEIA para saborear os melhores pratos que existem, não deixes de trocar dois dedos de conversa com Djuku, agora que ela cozinha no meio de todos. E já agora, por favor, pede-lhe da minha parte notícias da aldeia.

Alain Corbel
A viagem de Djuku
Lisboa, Caminho, 2003
Adaptação

publicado por opoderdapalavra às 22:06


Lenda Finlandesa

Era uma vez um rapaz chamado Severino que partiu em busca de fortuna. Atravessou colinas, prados e florestas cerradas até chegar ao mar. Aí viu um pequeno barco a remos na praia.

Meteu-se no barco e partiu oceano fora. O barco foi sacudido pelos ventos, fustigado pelas chuvas até que uma onda mais forte lançou o rapaz pela borda fora. Mas ele não perdeu a esperança. Nadou noite e dia até chegar a uma praia branca aos pés dum penhasco negro. Balouçando do alto do penhasco estava uma corda por onde subiu.

No cimo do penhasco encontrou uma vereda que o conduziu ao interior da montanha. Ao fundo viu uma porta dourada que se abriu para ele entrar. Atravessou-a e encontrou-se num mundo mágico de prados verdes, flores lindas e árvores donde pendiam frutos dourados.

Encontrou então um velho com uma barba branca muito comprida que lhe perguntou quem era e para onde ia.

– Chamo-me Severino! – respondeu ele. – Mas não sei para onde vou.

– Então fica aqui – propôs o ancião. – E sê o meu criado.

E foi assim que Severino ficou a viver com o velho no seu palácio de cobre. Na manhã seguinte o homem disse que ia sair para uma longa viagem.

– Aqui estão as chaves do castelo – informou ele. – Há vinte e quatro chaves que pertencem a outros tantos quartos. Podes entrar em todos à vontade, excepto no último. Se fores a esse, será por tua conta e risco.

Quando se viu sozinho no castelo, Severino começou a explorar os vinte e três quartos. Cada um mais maravilhoso que o anterior. Um era todo ouro, outro todo prata, outro preto de ébano e um outro de mármore polido. Mas depois de os ver todos, sentiu-se triste. «Agora acabaram as minhas aventuras», pensou ele. «Não há mais nada para ver. Mais vale regressar a casa.»

Porém, ao acordar na manhã seguinte, sentiu a sua mão apertar com força a chave do último quarto. «É um sinal!», pensou. «Abrirei a vigésima quarta porta e enfrentarei o perigo.»

Quando abriu a última porta viu no meio do salão um trono alto e, sentada nele, a mais bela rapariga do mundo.

– Quem és? – perguntou Severino.

– Chamo-me Vappu – respondeu a rapariga. – Há muito tempo que espero por ti.

A sua voz ondulava no ar parecendo-se com o som duma harpa.

Severino e Vappu viveram felizes no castelo de cobre durante um mês. Costumavam sentar-se junto ao rio de prata e comer dos frutos dourados da árvore do jardim do homem velho sem se preocuparem com nada, até ao dia em que adormeceram junto ao rio.

Quando Severino acordou Vappu desaparecera.

Severino chamou por ela vezes sem conta:

– Vappu! Vappu! – mas a única resposta que ouvia era o chilreio dos pássaros encarnados e dourados que esvoaçavam

O ancião regressou e veio encontrar Severino numa angústia profunda.

– Eu avisei-te de que não devias abrir a vigésima quarta porta – lembrou ele.

– Sou suficientemente crescido para tomar as decisões que entender.

– E agora que as tomaste, achas-te mais sensato?

– A minha dor tornou-me mais sensato e mais adulto – respondeu Severino.

Então o velho resmungou umas palavras mágicas e Vappu reapareceu radiosa como um raio de sol.

– Nunca mais me deixes! – pediu Severino.

– Não deixarei – respondeu Vappu – mas com uma condição. Tens de te esconder de mim para eu não te encontrar. Dou-te três possibilidades.

Severino não sabia como suplantar a esperteza de Vappu, mas o velhote segredou-lhe um feitiço, dizendo que o ajudaria. Primeiro Severino escondeu-se no meio dos coelhos bravos, mas Vappu encontrou-o. Depois tentou esconder-se no meio dos ursos, mas Vappu tornou a encontrá-lo.

Por fim resolveu esconder-se no coração dela, dizendo:

– Três vezes bato à tua porta, coração querido. Deixa-me entrar, jóia do meu coração, deixa-me entrar!

Vappu olhou em volta:

– Que estranho! – disse ela. – Há um minuto atrás Severino estava aqui ao meu lado e agora desapareceu.

Severino chamou-a:

– Não consegues encontrar-me, meu tesouro?

– Não, não consigo – respondeu Vappu. – Onde estás?

– Estou aqui no teu coração – sussurrou Severino.

– Então o meu coração é teu! – assegurou Vappu.

Severino saiu e abraçaram-se. Viveram felizes para sempre no castelo de cobre, junto ao rio prateado, debaixo das árvores douradas.

Adaptação
Livro Ilustrado de Contos de Fadas
Porto, Liv. Civilização Ed., 1998

publicado por opoderdapalavra às 22:05

No arquipélago de Cabo Verde, há notável escassez de vegetação. Causa — falta de água. Rareando as chuvas, diminuem os produtos da terra, indispensáveis à alimentação; não há pastos para os gados, logo não há carne. Isto quer dizer: a fome reina em casa dos mais pobres.

Ficai sabendo, meus amigos, que o Chaço, no México, em poucos anos se transformou em deserto, devido ao corte das árvores. Anteriormente, erguia-se ali densa floresta. Mas os homens, tolos e gananciosos, na ânsia de enriquecerem com o produto das madeiras, gradualmente a devastaram. O solo tornou-se incapaz de reter a humidade. Os campos de cultura negaram-se a produzir e os homens viram-se forçados a abandonar a região infértil.

O mesmo se deu no Ceará, em terras brasileiras. E, em Cabo Verde, chega-se a morrer de fome, em virtude das mesmas causas. Por estas explicações, toda a gente compreende o quanto devemos querer bem à boa amiga árvore, que tudo nos dá, sem nos pedir mais do que ligeiros cuidados em plantá-la, tratá-la e guardá-la dos dentes vorazes de alguns animais daninhos e das foices inconscientes dos homens tolos.

Certa manhã ardente, Manuel Francisco – um camponês de pele bronzeada e chefe de numerosa família, desesperado por se ver sem trabalho nem alimento para si e para os seus, foi andando, andando, pela praia que ficava pertinho da sua casa.

Insensivelmente, afastou-se e alcançou um ponto onde jamais chegara. Cansado, sen ta-se num penedo e fica a meditar na sua triste sorte. O dia vai alto e milhares de raios de sol brincam à super fície das águas, esplendem em centelhas luminosas. Manuel Francisco mira ao longe e parece-lhe avistar um ilhéu, desconhecido dele, ao centro do qual se ergue, aprumada e esbelta, uma linda palmeira. Busca nos recantos da praia alguma canoa abandonada, na esperança de encontrar trabalho nesse ilhéu. Procura por aqui e por além e encontra uma canoa velha.

Manuel Francisco é remador hábil. Mete-se na canoa e dirige-se ao ilhéu.

O mar, calmo até àquela hora, embravece de súbito e o remador emprega sérios esforços para acercar-se do ilhéu. Aproa, desembarca, ata a canoa ao tronco dum coqueiro. Este e a palmeira constituem a única vegetação do ilhéu. Manuel Francisco trepa ao alto do coqueiro. Colhe dois cocos magníficos e tenta atirá-los para dentro da canoa. Mas tanto esses dois cocos, como outros que sucessivamente arranca, em vez de caírem dentro da canoa, vão mergulhar no mar.

Desce. Arreliado com a ideia de regressar a casa de mãos vazias, atira-se à água. Bom mergulhador como em regra, o são, os camponeses cabo-verdianos, desce, desce até ao fundo, a ver se agarra algum dos cocos. A sua surpresa é ilimitada ao descobrir, não os seus cocos, mas uma casa lindíssima, erguida no fundo do mar. Espanta-se com a descoberta, e mais aumenta a sua admiração quando, na sua frente, à porta da casa, surge um velhote de compridas barbas brancas e lhe pergunta:

— O que desejas? Não sabes que é proibido aos homens descerem até ao palácio do Régulo [1] dos Mares?

— Senhor, eu ignorava que havia régulos no fundo dos mares — responde tremendo Manuel Francisco. — Eu e a minha família temos fome. Colhi cocos no ilhéu e dei xei-os cair à água. Como já tenho mergulhado muitas vezes, a apanhar as moedas que os passageiros dos vapo res, em S. Vicente, atiram ao mar, vim buscar os meus cocos.

— Bom. Tenho pena de ti. Não te farei mal. Espe ra-me aqui.

Manuel Francisco esperou um momento. Em breve, o Régulo apareceu com uma panela de barro nas mãos. Entregou-a ao mulato, explicando-lhe:

— Leva-a para tua casa. Quando tiveres fome, é só ordenar-lhe: «Panela, dá-me de comer!» Ela dar-te-á alimento suficiente para ti e para a tua família.

Manuel Francisco agarrou sofregamente a panela e correu para a canoa. Apenas embarcou, decidiu-se a expe rimentar as virtudes da panela. Colocou-a diante de si e ordenou:

— Panela, minha rica panela, faz por mim o que costumavas fazer pelo Régulo dos Mares!

Da panela saiu imediatamente rico jantar, completo e apetitoso, a que não faltava sequer a magnífica sobre mesa.

Remou com presteza, na ânsia de levar mantimentos à família. Mas, ao desembarcar, um pensamento ruim, de cruel egoísmo, lhe impediu a prática desse justo dever.

— E se a minha mulher e os meus filhos, esfomeados como estão, comem tudo, e a panela nada mais tem para me dar? O melhor é guardar segredo e eles que se governem…

Escondeu a panela e, ao chegar a casa, vendo toda a família debilitada com fome, fingiu-se aflito, estendeu-se a um canto e não tardou a adormecer.

A mulher, desconfiada do seu sono tranquilo, bem diferente do da restante família, que enganara o apetite com pequena quantidade de papas de milho, resolveu ficar de sobreaviso.

Nos dias seguintes, principiou a notar que o marido saía e se dirigia a certo lugar, mal a família estava reco lhida. E engordava – o grande maroto – enquanto a mulher e os seus desditosos filhinhos emagreciam a olhos vistos e estavam quase esqueléticos. Uma noite, decidida a esclarecer o caso, a mulher seguiu-o na sombra e veri ficou a má conduta do Manuel Francisco. Este a voltar costas, ela a apoderar-se da panela, a correr à aldeia, em busca da família e, compadecida das desgraças alheias, a chamar também os vizinhos esfomeados, para saciarem o apetite.

A pressa e a miséria de alguns eram tais que, em compreensível descuido, quebraram a panela!

É fácil de imaginar a cólera do Manuel Francisco, quando soube o acontecido.

Espancou a mulher e os filhos, indignou-se com a vizinhança, prometeu vingar-se de tudo e de todos.

No dia seguinte, muito cedo, voltou à praia, embarcou na velha canoa e remou para o ilhéu. Colheu mais cocos, atirou-os à água e de novo desceu ao fundo do mar a buscá-los, na esperança de outra aparição do velho Régulo.

Assim sucedeu. Desta vez, o velhote, depois de ouvir o relato sucedido, encrespou as enormes sobrancelhas e, sem proferir palavra, entrou no seu domicílio, donde trouxe um bonito pau, de madeira rija, polida e brilhante. Ofereceu-o ao egoísta.

Manuel Francisco saltou à canoa, com o maior desembaraço e remou para a costa. Desembarcou e, mesmo à beira-mar, exclamou:

— Pau, meu rico pauzinho, faz por mim o que fazias pelo Régulo dos Mares!

O pau, em movimentos rápidos, desatou a bater no Manuel Francisco. Este, aflito, obrigado a fugir por debaixo de água, arrastou-se como pôde até uma praia distante. Só assim se livrou da pancadaria.

O egoísta compreendeu então a fealdade do seu acto e como fora justo o castigo aplicado pelo Régulo dos Mares. Resolveu emendar-se.

E, fiquem sabendo os meus meninos, emenda foi ela, que nunca mais procedeu como egoísta ou mau.

Emílio de Sousa Costa
Joanito Africanista
Porto, Livraria Figueirinhas, s/d

(excerto adaptado)

publicado por opoderdapalavra às 22:05


Há muito tempo, em pleno coração do deserto, Khemma, um velho tuaregue que já não tinha forças para viajar, instalou-se num desfiladeiro povoado de frágeis acácias e de tamarindos. A sua esposa Aicha e o filho Krim acharam aquele lugar terrivelmente hostil. Preferiam viver num oásis ou num povoado acolhedor, mas não contrariavam Khemma; a palavra do chefe de família era sagrada.

O pai construiu um abrigo redondo, de adobe, com telhado de juncos, e fez, com o auxílio de ramos, uma cerca para abrigar a camela e a cabra, e arrumar as alfaias. Com fibras secas, ergueu um depósito sobre troncos para que, deste modo, os alimentos ficassem protegidos dos chacais, das hienas e dos abutres. Colocou armadilhas para afastar as raposas do deserto e as víboras de cabeça dura.

Nunca o seu filho Krim o ajudou. Preferia dormir à sombra de uma palmeira e regalar‑se com leite de camela bem fresquinho.

― Sou fraco, pai adorado, tão fraco que mal me tenho nas pernas… ― repetia ele ao longo do dia.

E Khemma, muitas vezes já sem forças, trabalhava, trabalhava sempre sem nada dizer, fazendo o seu dever, enquanto o filho se lamentava uma e outra vez…

Às vezes, o velho tuaregue consultava os amuletos e os talismãs pendurados à cintura e perguntava ao céu:

― Que destino reservas a este preguiçoso?

Mas da constelação sagrada da Lebre não vinha resposta. Então murmurava:

― In cha’ Allah, se é assim, é porque Deus assim o quer.

Um dia, Khemma descobriu “o olho de água”. Com as mãos escavou uma cova, encontrou lama, de seguida um fio brilhante, e abriu um poço. Brotou um caudal claro e cristalino, formando no areal um lago que transbordava para o canal ressequido. Cresceram tufos de arbustos verdes. A cabra pôde, assim, roer arbustos tenros e doces.

Levantou um muro de seixos redondos e lisos para o protegerem das borrascas. Espantou o argali e os lagartos, apanhou gafanhotos, foi buscar lenha, carregou à cabeça pesados cavacos para fazer o fogo.

E Khemma, muitas vezes já sem poder mais, trabalhava, trabalhava, sem nada dizer, cumprindo o seu dever, enquanto o filho se lamentava uma e outra vez…

― Sou fraco, querido pai, tão fraquinho…

Aicha mantinha o acampamento, preparava as papas de leite e o chá verde, cozia os pães e os crepes de farinha de trigo. À noite, exausto, sentado numa esteira diante das brasas escarlates, o velho tuaregue adormecia sem acabar a refeição e sem olhar para as estrelas. No entanto, gostava muito daquelas luzinhas que piscavam por cima das dunas. Aicha defendia ferozmente o filho das críticas paternas e repetia sem cessar ao marido, a fim de o acalmar das suas impaciências:

― Alá deu-nos o tempo, mas nada disse da pressa… Qualquer dia, vais ver que Krim vai pôr mãos à obra. É um bom rapaz. Vais ter orgulho no teu filho!

E Khemma respondia-lhe:

― As luas passam e as pedras não se mexem!

As noites e os dias iam decorrendo. Uma bela manhã, Aicha, aborrecida e desanimada, lamentou-se:

― Não temos trigo, nem cevada, nem milho-miúdo, e a aldeia fica tão longe, pelo menos a quatro dias de camela…

Krim, como não queria sair da sombra da palmeira, acrescentou com voz arrastada:

― Estou tão fraco, pai e mãe adorados, tão fraco que as pernas mal podem comigo…

― Seria uma tortura infligires ao teu único filho o sol e a longa caminhada até à povoação! ― exclamou Aicha.

Krim, tranquilizado, virou-se para o outro lado e adormeceu imediatamente.

In cha’ Allah, se assim é, é porque Deus assim o quer… Mas precisamos de uma terra para cultivar, custe o que custar”, pensou o velho tuaregue. Sem dizer uma palavra, Khemma levantou-se, envolveu um turbante na cabeça, pegou no cajado, na espingarda, no cutelo, encheu o saco de pães e de tâmaras, cuspiu no fogo, apertou os amuletos e os talismãs, e partiu em busca de terra. Deixou a camela no acampamento para não a cansar, perdeu-se nos planaltos rochosos, entrou pelas areias dentro, enfrentou a tempestade, enfrentou os relâmpagos, a trovoada e os raios. A travessia era perigosa, mas o velho tuaregue tinha coragem.

E Khemma, muitas vezes já sem forças, caminhava, caminhava sempre, sem dizer nada, enquanto o filho dormia e continuava a dormir… Cheio de sede, apertava o odre e bebia a água límpida do poço, que tanto o reconfortava. Quando a lua ficava avermelhada, montava o bivaque no recôncavo de um rochedo, acendia um fogo com lenha de acácia, enrolava-se na sua comprida túnica e adormecia, abatido de cansaço.

Uma noite, quando o firmamento iluminava como em pleno dia, ouviu durante o sono uma vozinha:

― Khemma, Khemma…

Primeiro julgou que era um sonho, mas a vozinha insistia:

― Khemma, Khemma, acorda…

O tuaregue esfregou os olhos, guardou o cutelo e examinou o céu. No meio daquela extensão de areal e rochedos, quem poderia saber o seu nome?

Empoleirada numa laje lisa, ao alcance do seu braço, uma gazela de olhos de ouro, de hastes verdes e brilhantes, deixando atrás de si uma suave claridade, fixava o olhar nele. Khemma, surpreso e desconcertado, ficou sem fala. Notou que a haste direita, escamosa, estava incrustada de esmeraldas.

― Tenho sede, muita sede… ― diz ela. ― Posso beber uma gota da tua água fresca?

Khemma não recusou e deitou na palma da mão a água pura do seu poço. A gazela, tal como prometera, bebeu uma gota apenas.

― Quem és tu? ― ousou perguntar Khemma.

― Sou a djenniya* de olhos de ouro.

― Como pudeste encontrar-me neste local?

― Sigo-te desde a noite dos tempos.

― Falas?

― Falo e protejo-te. Só tu podes ouvir-me e ver-me, porque és um ser justo e bom. E diz-me, por que te esfalfas neste deserto a seguir trilhos onde apenas se pode encontrar velhas carcaças e ladrões de rapina?

― Procuro um recanto abrigado das tempestades para cultivar o trigo, a cevada, o milho-miúdo, e alimentar a minha família.

A gazela ficou um instante em silêncio. Não tirava os olhos de Khemma.

― Enrola a tua esteira, pega no cajado, na espingarda, no saco, e segue atrás do meu rasto de luz.

Levou Khemma até um terreno estaladiço, ao lado de uma falésia desconhecida.

― Tira uma escama de uma das minhas hastes, mas cuidado, escolhe bem… Entra no meu rasto de luz e planta a escama aos teus pés!

Khemma, a quem o ouro, as jóias, as pedras preciosas nada interessavam, e queria apenas encontrar um terreno de cultivo, retirou delicadamente uma simples escama da haste esquerda e mergulhou-a na areia.

Levantou-se então um vento suave. As ervas ficaram como que envoltas num véu… Khemma, arrastado por um agradável torvelinho, acordou num campo de terra negra, muito fértil, não longe do acampamento.

― Se te convém, ofereço-to ― diz ela.

E, sem o mais pequeno ruído, a gazela desapareceu na noite.

Quando Khemma contou a sua aventura à mulher e ao filho, apenas ouviu troça e tolices.

― Não estás bom da cabeça… ― gracejou o filho.

― Só nas lendas é que existem deusas! ― rebentou de riso a mulher.

― Viste e falaste com uma gazela invisível? ― troçou de novo Krim.

― Pobre marido! Apanhas sol demais na cabeça…

Saturado das pilhérias da mulher e do filho, Khemma dirigiu-se de novo para o seu pedaço de terra, em busca de calma e serenidade.

Quando estava a retirar pedras, uma a uma, sentiu atrás de si o bafo quente da sua amiga, a djenniya de olhos de ouro.

― O que fazes aqui? ― perguntou-lhe ela.

― Separo as pedras grandes, para poder abrir regos direitos ― respondeu Khemma.

A gazela ficou calada por uns instantes.

― Tira uma escama de uma das minhas hastes mas tem cuidado, escolhe bem… Entra no meu rasto de luz e põe-na em cima da primeira pedra que vires.

Khemma, que só se preocupava com a terra negra e fértil, retirou uma escama da haste esquerda e colocou-a em cima da primeira pedra, aos seus pés.

Levantou-se então um vento suave. As ervas ficaram como que envoltas num véu…

Khemma foi arrebatado por um suave torvelinho e acordou num quintal rodeado de muros altos que desafiavam todas as correntes de ar do deserto. Não restava nem uma só pedra.

― Se te convém, ofereço-to ― diz ela.

E, sem o mais pequeno ruído, desapareceu na luz do sol.

O tuaregue regressou tão cedo ao acampamento que a mulher estranhou. Ele não lhe deu nenhuma explicação. Foi deitar-se à sombra da palmeira, descansou finalmente diante das estrelas e rezou às escondidas.

No dia seguinte, Khemma voltou com uma picareta e começou a escavar.

― Que fazes tu aí? ― perguntou-lhe a gazela.

― Procuro água para regar as minhas futuras plantações e estou a abrir regos.

A gazela ficou um instante em silêncio.

― Tira uma escama de uma das minhas hastes, mas tem cuidado, escolhe bem… Entra no meu rasto de luz e molha essa escama na água límpida do teu odre.

Khemma, que só se preocupava com a irrigação do quintal, retirou-lhe uma escama da haste esquerda e molhou-a. Levantou-se então um vento suave. As ervas ficaram como que envoltas num véu… Khemma foi arrebatado num doce torvelinho e acordou a ouvir o canto milagroso da água nos regos.

― Se te convém, ofereço-to ― diz ela.

E, sem ruído, desapareceu no brilho das rochas.

Nos dias seguintes, quando o velho tuaregue chegava, a gazela estava à sua espera e fazia-lhe sempre a mesma pergunta:

― Que fazes aí?

― Vou lavrar e plantar depois.

E ajudava-o a lavrar, a semear, a regar. Quando chegou o tempo das longas caravanas que atravessam o deserto, Khemma ceifou o trigo, a cevada, o milho, colheu legumes maravilhosos e deu a provar à gazela de olhos de ouro os seus primeiros frutos.

Khemma já não podia passar sem a djenniya. Juntos conversavam, e dialogavam longamente com os astros. Mas, no acampamento, Aicha e o filho não acreditavam no encontro do velho tuaregue e riam-se dele.

― Ele fala sozinho e até muito tarde durante a noite! Ainda bem que trabalha como um danado ― diziam eles.

Na época das promessas e dos amores amontoavam-se cestos de legumes e sacos de cereais no acampamento.

― Que vamos fazer de tudo isto? ― perguntou Aicha, preocupada.

O pai chamou o filho e pediu-lhe que fosse ao mercado trocar os seus produtos por novas alfaias, especiarias, rolos de tecido, e tabaco, e que trouxesse mais uma cabra.

― Segues ao lado da camela, porque vai muito carregada! Tem cuidado, não a canses e não a montes!

― Estou tão fraco que as minhas pernas…

Não chegou a acabar a frase, tal foi a ira que se apoderou de Khemma. Cheio de medo, Krim, que nunca tinha visto o pai naquele estado, tomou imediatamente o caminho da aldeia.

Krim ia à frente, a guiar a camela. Depois, pouco a pouco, pôs-se a andar ao seu lado, a aproveitar a sombra da bossa e, mais tarde, começou a segurar-se na cauda e era ela que o puxava. Assim passou a primeira duna e, com muita dificuldade, a segunda. Arrastava-se em vez de avançar, sempre a beber da cabaça e a gemer. Nos cimos que o separavam da terceira duna, a garganta ardia-lhe e a língua estava seca. De um só trago, bebeu toda a reserva de água.

À hora em que o sol está mais alto e tudo o que vive no deserto se esconde, Krim fez uma paragem. Encolheu-se na sombra de uma fenda. “Se a camela me transportasse, quem é que viria a saber?” pensou ele. “E se…”

Saltou de alegria, ante a ideia sublime que o assaltou. Descarregou um saco de trigo e enterrou-o. “Direi ao meu pai que os comerciantes eram avarentos e não me deram quase nada em troca.”

Saltou para cima da sela.

A camela deu um passo e parou.

Krim, teimoso e decidido a não caminhar, enterrou um segundo saco de milho. “Direi ao meu pai que os comerciantes eram ladrões da pior espécie…”

Saltou para cima da sela.

A camela deu um passo e parou.

Krim enterrou um terceiro e um quarto saco. “Direi ao pai que é preciso enforcar os ladrões dos comerciantes, para que os abutres lhes arranquem os olhos!”

Saltou para cima da sela.

A camela deu quatro passos e voltou a parar.

Decidido a fazer-se transportar até ao mercado custasse o que custasse, espalhou todo o carregamento e escondeu os sacos debaixo de pedras. A fêmea, livre de todo o fardo, leve como um antílope, nem esperou que ele lhe subisse para o lombo. Farejou ao longe o gorgolejar de uma fonte, o cheiro das silvas adocicadas, e desatou a correr. Krim foi incapaz de a agarrar.

De repente, levantou-se uma tempestade de areia. As dunas deslocaram-se como ondas movediças, apagando, para o infeliz viajante, todas as marcas e todas as referências. Perdido no areal e sem montada, Krim conseguiu mesmo assim arrepiar caminho até ao acampamento.

Khemma, ao ver o filho regressar despojado, envergonhado e a chorar, pensou logo que fora atacado por um bando de ladrões. Consolou-o como pôde, com palavras que o sossegaram. Mas Krim confessou a sua malvadez. Khemma foi acometido por uma onda de ira louca, pegou no cajado, volteou-o no ar e bateu, bateu, bateu no pobre rapaz.

― O que estás a fazer? ― perguntou a gazela.

― Estou a castigar o meu filho que me desobedeceu. Perdeu todas as colheitas e arruinou o fruto do meu trabalho.

― Isso de nada serve. É melhor encheres-lhe o saco de provisões, dares-lhe reservas de água para uma semana e mandá-lo procurar a camela e as mercadorias. Esse castigo ser-lhe-á realmente útil. Compreenderá assim a sua negligência! Lembra-te de que a cólera é a mãe de todas as loucuras!

Khemma, perante tais palavras, parou imediatamente de bater em Krim.

Aicha, como não queria deixar partir o filho sozinho, foi com ele. Passado o acampamento, Krim começa a lamentar-se:

― Sou tão fraco, mãe adorada, tão fraco, que as pernas…

E Aicha aliviou-o das reservas de água. Antes de chegar ao trilho grande, recomeçou com os seus lamentos:

― Sou tão fraco, mãe adorada…

E Aicha aliviou-o do saco das provisões. À terceira duna, depararam com os cestos de legumes e frutos roídos pela bicharada e, mais adiante, os sacos de trigo e de milho vazios, que tinham sido o regalo dos escorpiões e das raposas do deserto. Quanto aos géneros alimentícios, estavam todos espalhados no meio dos grãos de areia. O desânimo invadiu Aicha e o filho.

― É preciso encontrarmos a camela, custe o que custar. Se a levarmos para casa, talvez se acalme a cólera do teu pai e ele nos perdoe…

― Mas onde é que poderá estar esse maldito animal? ― vociferou Krim, completamente desesperado.

Foi então que apareceu diante deles a gazela de olhos de ouro. Viram que Khemma não estava louco, que a sua história não era uma miragem distante.

― Tenho sede, muita sede… ― diz ela. ― Posso beber só uma gota da vossa água fresca?

Aicha espremeu o odre de pele todo, mas nem uma só gota caiu.

― Vês ― murmurou Krim ― nem sequer lágrimas temos nos olhos para chorar!

― Conheces-nos? ― perguntou a mãe.

― Sigo-vos e protejo-vos desde a noite dos tempos. Agora podeis ver-me e ouvir-me, porque julgo que sois bravos nómadas. Sei o que procurais e posso ajudar-vos, se quiserdes.

Perante uma tal oferta, nem foi preciso que a gazela de olhos de ouro repetisse o que acabara de dizer.

djenniya ficou por um instante em silêncio, depois dirigiu-se a Krim:

― Tira uma escama de um das minhas hastes, mas cuidado, escolhe bem… Entra no meu rasto de luz, atira-a de seguida na direcção da Constelação de Lebre e encontrarás a camela.

Mas Krim só tinha olhos para a haste da direita, onde as esmeraldas brilhavam. Sem hesitar nem reflectir, arranca com toda a força a escama engastada na maior pedra preciosa. O castigo não se fez esperar.

Surgiram todos os ventos do deserto num furacão que varreu os dois infelizes de cima dos elevados planaltos e os arrastou até um grande rio, lançando-os no oceano. Durante esse tempo, Khemma esperava o regresso da mulher e do filho. Passavam os dias e a tristeza apoderava-se do velho tuaregue. Às vezes, subia ao cimo da falésia e passava horas a olhar as infinitas extensões de areia. Mas nenhuma poeira surgia no horizonte. Dirigiu-se às estrelas; os astros não lhe responderam. Em vão apertou os amuletos e os talismãs. Não obteve nenhuma resposta.

Então sentou-se no meio do quintal e esperou. Viu as aves debicarem os últimos grãos de trigo.

― Se perdi tudo, a família, os bens, é porque Alá assim o quis ― lamentou-se ele.

Permaneceu assim todo o Inverno. Depois, nos primeiros dias do regresso das longas caravanas em direcção ao Sul, viu uma estranha luz penetrar no seu corpo e sentiu o bafo quente da gazela de olhos de ouro.

― Não fiques triste, Khemma ― diz-lhe ela baixinho. ― Em cada respiração, em cada instante, é preciso começar de novo, recomeçar tudo. Estou aqui e protejo-te. Dou-te esta escama da minha haste direita. Tem uma esmeralda. Coloca-a na tua face e formula um desejo. Serás logo atendido.

Delicadamente, Khemma pôs a esmeralda na face e fechou os olhos.

Levantou-se então um vento leve e suave. As ervas ficaram como que envoltas num véu… Sentiu-se arrebatado num longo sonho e o seu desejo foi atendido.

Khemma acordou na esteira do seu acampamento, diante de brasas escarlates. Aicha tinha preparado um maravilhoso chá com bolos de festa. O filho Krim sorria-lhe sem gemer nem se lamentar. A camela e a cabra pastavam calmamente.

― Se gostas desta vida, ofereço-ta ― diz a djenniya de olhos de ouro.

Khemma respondeu que sim e, sem ruído, a gazela desapareceu na lua de Abril.

O velho tuaregue resplandecia de felicidade.

Sobre os planaltos, uma última tempestade rugiu e o sol brilhou para sempre.

 

* Para os tuaregues, a djenniya, ou gazela de olhos de ouro, é um génio bom e protector.

Jean Siccardi
La gazelle aux yeux d’or
Paris, Albin Michel Jeunesse, 2002

publicado por opoderdapalavra às 22:04


(E.U.A.)

O mar deixara na praia um estranho pedaço de madeira às cores, enfeitado de plumas. Yanauluha pegou nele.

Para que é que isto serve?

As ondas disseram-lhe baixinho que era uma vara mágica que criava estações do ano…

Yanauluha apenas conhecia o Verão, que era demasiado quente.

Será que com aquele pau iria descobrir outra estação mais amena?

Yanauluha voltou para a aldeia e, perante toda a tribo, deu duas pancadinhas no chão com a vara e imediatamente surgiram dois pequenos ovos brancos e muitos outros ovos grandes e azuis, que deviam trazer a Primavera.

Alguns Índios precipitaram-se para os ovos azuis, julgando que a estação que traziam seria por certo mais bela, já que os ovos eram maiores.

Yanauluha e os amigos tiveram de se contentar com os ovos brancos.

Os dias passaram.

Quando os ovos brancos começaram a estalar, saíram de lá passarinhos de cores suaves que sobrevoaram a aldeia e em seguida desapareceram no ar, em direcção ao sul.

Yanauluha e os seus amigos seguiram-nos.

Os Índios que tinham escolhido os ovos azuis soltaram gritos de alegria: as suas aves tinham cores magníficas!

Estas aves coloridas rumaram para norte e os Índios seguiram-nas.

Mas depressa as aves perderam as suas lindas plumas coloridas. No seu lugar surgiram plumas pretas, bem feias… e o seu chilreio transformou-se em horríveis grasnidos!

As aves que assim grasnavam eram corvos.

Os Índios que as tinham seguido passaram a ser habitantes do Inverno, enquanto que Yanauluha e seus amigos, que tiveram a sensatez de não pegar nos ovos maiores e de seguir as aves menos bonitas, ficaram com a Primavera.

Franck Jouve
Le Printemps
Paris, Hachette Jeunesse, 1992
Tradução e adaptação

publicado por opoderdapalavra às 22:03


(E.U.A.)

A Avó Aranha estava farta de tanto frio e de tanta noite.

— Quando penso — resmungava ela — que agora noutro sítio é Primavera!…

— Primavera? O que é isso?

Vivamente interessados, o picanço-verde, o musaranho, o busardo, sentaram-se à volta da Avó Aranha. Esta explicou-lhes que a Primavera era uma estação suave e bela, a mais maravilhosa das estações. Ao ouvi-la, os outros animais arregalaram os olhos.

— E se pedíssemos com toda a delicadeza? — sugeriu o picanço-verde. — Será que os nossos vizinhos nos emprestavam a Primavera?

— Claro que não! — replicou a raposa. — Guardam-na só para eles, já há muito tempo. Temos de lha tirar.

O musaranho era da mesma opinião. Propôs, então, que se fosse roubar um pouco de Primavera.

— É simples. Escondo-a nos pêlos da minha cauda! — declarou ele, sem imaginar sequer o que iria acontecer-lhe…

O musaranho conseguiu apoderar-se de um pedaço de Primavera e escondeu-o como tinha planeado.

Mas, no caminho de regresso, o calor da Primavera deitou fogo à cauda.

Desde então, os musaranhos nem um único pêlo têm na cauda!

O busardo, por sua vez, decidiu tentar a sua sorte. Conseguiu, sem grande dificuldade, apoderar-se de um pedaço de Primavera, que pôs à cabeça para a transportar.

Foi uma desgraça. A ave voltou de mãos a abanar, com as suas belas plumas todas queimadas. A partir daquele dia todos os busardos são carecas!

Então, a Avó Aranha resolveu também tentar a sua sorte. Pôs-se corajosamente a caminho… levando consigo uma bola de barro.

— Para fazer o quê? — perguntaram os outros animais.

Quando a Avó Aranha chegou ao sítio onde estava bom tempo, fez um pote com o barro que levava. Depois, pegou num bom bocado de Primavera e meteu-o dentro da panela ainda húmida.

A Avó Aranha regressou tranquilamente a casa, trazendo o pote, que já começava a aquecer…

A Primavera compreendeu que, desta vez, não escaparia: quanto mais calor ela fazia, mais o barro endurecia e mais forte a sua prisão se tornava.

Decidiu, então, descobrir a terra para onde a levavam.

Quando a Avó Aranha a libertou, a Primavera gostou logo da sua nova terra e fez brotar uma bonita luz e um suave calor.

publicado por opoderdapalavra às 22:03


(Portugal)

O Emir Ismail apaixonou-se por uma princesa chamada Gilda. A jovem vinha de um país frio, onde não se conhecia o sol quente do país do Emir Ismail.

Ismail e Gilda casaram. A princípio, viveram felizes mas, ao fim de um ano, Gilda adoeceu. Andava sempre triste, sem ninguém compreender porquê.

Um grande sábio, Ali, acabou por descobrir o mistério. Explicou que Gilda tinha saudades da neve que cobria os pinheiros do seu país.

— E, então, qual é o remédio? — perguntou Ismail.

O sábio abriu os braços e respondeu:

— Só vejo um: trazer neve para cá. Mas infelizmente…

Ismail abanou a cabeça. Compreendera que o sol depressa faria a neve desaparecer…

— Que fazer então? — perguntava-se ele. — Onde hei-de encontrar neve que não derreta?

O sábio propôs uma solução. Mandou plantar amendoeiras por todo o país e afirmou que a Primavera salvaria a princesa.

Nos primeiros dias soalheiros, as amendoeiras cobriram-se de milhares de florinhas brancas. Pelo país todo!

Ali esboçou um grande sorriso. De longe, pareciam flocos de neve!

Deslumbrado, Ismail correu para o leito da sua amada e abriu as janelas do quarto.

— Gilda, olha como nevou!

Ao ouvir aquelas palavras, a princesa levantou-se. Viu o manto branco que cobria os campos e os seus olhos brilharam de felicidade.

Gilda rapidamente ficou curada.

 

Franck Jouve
Le Printemps
Paris, Hachette Jeunesse, 1992
Tradução e adaptação

publicado por opoderdapalavra às 22:02

Telepino

(Próximo-Oriente)

Os deuses andavam preocupados. A Primavera já tinha começado há algum tempo, mas por aquele dia, ainda não rebentava erva, nem gomos nas árvores, nem desabrochavam flores.

Quanto às folhas novinhas, amareleciam nas árvores e caíam como no Outono! O que estaria a passar-se? A natureza tinha adormecido como se o Inverno tivesse regressado.

— Mas o que andará a fazer Telepino, o deus da vegetação? — interrogavam-se os deuses.

Telepino tinha simplesmente desaparecido.

Tanto na terra como no céu, a tristeza era generalizada: sem Telepino não haveria Primavera e, sem Primavera, o mundo iria permanecer eternamente frio.

O deus da trovoada chamou dois touros, Seri e Urra:

— Parti à procura de Telepino e tragam-no aqui — disse-lhes.

Seri e Urra procuraram durante muito tempo. Atravessaram muitos campos e pradarias, mas acabaram por regressar de mãos vazias…

Então, o deus do sol ordenou a uma águia que sobrevoasse as montanhas. Mas a ave não encontrou rasto de Telepino e também voltou de mãos a abanar.

Entretanto, a natureza continuava a perder forças…

Então, a deusa Inara confiou a mesma missão a uma pequena abelha.

— Uma abelha? Que ideia disparatada! — troçaram os outros.

A abelha procurou por todo o lado e acabou por descobrir Telepino num bosque. Deitado no chão, dormia profundamente. Mergulhado nos seus sonhos, não se tinha apercebido de que a Primavera havia adormecido juntamente com ele.

Como acordá-lo? A abelha picou Telepino nos pés e nada! Então, picou-o na mão.

— Ai! — gritou ele, sobressaltado.

Esfregou a mão, o pé, abriu um olho e ergueu-se.

— O que estou aqui a fazer? E porque está tanto frio?

Mas, naquele instante, o mundo começou imediatamente a mudar à sua volta: a natureza inteira estava a acordar ao mesmo tempo que Telepino, que prometeu nunca mais fazer a sesta!…

Franck Jouve
Le Printemps
Paris, Hachette Jeunesse, 1992
Tradução e adaptação

publicado por opoderdapalavra às 22:01
23 de Fevereiro de 2012

 

(Sibéria)

Todos os anos, quando Dilacha julga que o Inverno já durou o suficiente, abre o grande saco da Primavera sobre a tenda que envolve o mundo e larga o calorzinho todo sobre a terra.

A Mãe Tom, que espreita impacientemente por aquele sinal, esfrega as mãos de contente, ao ver chegar o bom tempo. Agora é a sua vez…

— Bem, o céu desta Primavera novinha em folha está muito azul mas não é habitado! Tenho de tratar disto.

Mãe Tom sobe a um rochedo e põe-se a sacudir as mangas com força…

Quanto mais ela agita as mangas, mais penas se vão escapando a voltejar pelo ar. Oh, maravilha das maravilhas! Todos os anos, as plumas incham cada vez mais e transformam-se em aves que voam a toda a pressa em direcção aos quatro cantos do céu.

A Avó Aranha regressou tranquilamente a casa, trazendo o pote, que já começava a aquecer…

A Primavera compreendeu que, desta vez, não escaparia: quanto mais calor ela fazia, mais o barro endurecia e mais forte a sua prisão se tornava.

Decidiu, então, descobrir a terra para onde a levavam.

Quando a Avó Aranha a libertou, a Primavera gostou logo da sua nova terra e fez brotar uma bonita luz e um suave calor.

Franck Jouve
Le Printemps
Paris, Hachette Jeunesse, 1992
Tradução e adaptação

publicado por opoderdapalavra às 21:28

 

Um dia, a miséria instalou-se em casa de um pobre homem. Apareceu-lhe sob o aspecto de uma rapariguinha de pés descalços. Depois de entrar, não mais quis deixar a sua nova morada. A vida do homem já não lhe corria bem e passou a correr pior. Suplicou à rapariga que fosse embora, para casa de pessoas mais ricas. Ao que a rapariga respondeu que, se ele lhe desse um par de sapatos, talvez ela pensasse em ir embora.

O homem poupou o mais que pôde e conseguiu comprar-lhe um par de sapatos. Mas, quando chegou o momento de os oferecer à rapariga, deu-se conta de que o tamanho era demasiado pequeno. Voltou a trabalhar afincadamente, a fim de lhe comprar um novo par. Mas os novos sapatos eram ainda mais pequenos. O homem privou-se de tudo quanto necessitava, mas acabou, finalmente, por comprar o par de sapatos maior do mercado. Contudo, nem estes serviam à rapariga…

Então, o homem deu-se conta de quanto mais empobrecia para calçar a sua miséria, mais ela crescia. Os seus pés seriam sempre demasiado grandes. Decidiu, pois, cessar os seus esforços. Desembaraçou-se de tudo e aprendeu a viver de nada… E, desarmada por este homem que tinha encontrado coragem de a albergar, a miséria acabou por fugir, tão contrariada e privada de tudo se encontrava.

Por muito fazer e muito ambicionar,
Alimentamos a nossa miséria.
Mais vale nada querer
E feliz viver.

Jean-Jacques Fdida
La naissance de la nuit et autres contes du monde entier
Paris, Didier Jeunesse, 2006
tradução e adaptação

publicado por opoderdapalavra às 21:27
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