
Sento-me à beira rio. As águas estão serenas, com um toque cálido, onde coloco os meus pés. Envolvida pelas árvores poliglotas, desde os castanheiros, eucaliptos, pinheiros e outros tantos, pego no caderno e no lápis e começo a escrevinhar:
“Estava a moça diante da noite, quando foi confrontada com a pergunta:
- Porque me procuras?
- Preciso dos teus conselhos...
- Que conselhos, minha filha?
- Preciso de saber como poderei controlar o mundo.
- E porque desejas controlar o mundo?
- Para que ele possa ser melhor. Estou triste de tanta guerra, de tanto ódio, estou devastada com tanta fome, tantas crianças sem sorrisos, tantas mulheres sem nome e tantos homens sem uma lágrima. Estou cansada de tantos gritos por dinheiro, tantos buracos pelo rio que se veste de negro, tantos tiros perdidos, bombas odiadas. Preciso de pintar o mundo de cor, de o tirar do preto e branco em que está mergulhado.
- Hum... pedes-me o impossível, sabes disso.
- Como te posso pedir o impossível? Tu és negra e no entanto és tão brilhante, tão reluzente, os amantes adoram-te, os empregados cansados veneram-te, és o descanso do dia, é a amante do sol, e consegues isso mesmo, sendo escura. Se o consegues, porque me dizes que é impossível a minha demanda?
A noite ficou por momentos retida no silencio. nem as estrelas, nem a lua conseguiam amadurecer pensamentos válidos para responderem a esta análise. A noite tentou dar-lhe uma resposta, um pouco engasgada:
- Sabes, minha filha, o mundo tem de ser assim, não o consegues nunca mudar, ele é o resultado de muitos males. O homem assim o construiu e agora só exterminando o homem seria possível devolver as cores a tudo.
A menina ficou agora ela pensativa, mas a sua audácia era ainda maior:
- Então diz-me como devo exterminá-lo.
- Quem?
- O Homem, claro.
A surpresa da noite era de um espanto que nem os morcegos conseguiam voar no seu leito. Estava colada nas palavras da menina.
- Mas... se o exterminares vais ser igual a ele, e tens de te exterminar também.
- Mas eu já o fui...
- Já o foste?
- Sim. Os sítios onde gostava de brincar foram substituídos por estradas, as horas em que eu adorava sair à rua foram aniquilados pelo medo de eu sair, a sala dos brinquedos na minha casa foi suprimida pela maior das televisões, a escola onde eu gostava de aprender foi alterada para uma prisão de filhos...
- Mas isso é a evolução dos tempos...
- Que tempos? Agora nas estradas morrem os que amo, na rua para onde eu saia são raptados os que com quem eu brincava, da televisão que substituiu os meus brinquedos saem noticias de guerras, de mortes, de fome, de dor, de crimes, e a escola onde aprendia agora é o refugio ideal para os pais dos meninos despejarem os filhos que não desejaram, apenas os quiseram para cumprirem calendário.
A noite ficava cada vez mais sem respostas para a menina. Afinal começava, a noite, também a sentir que o Homem e a sua evolução está cada vez mais saturada. Teve a ideia de lhe propor um sonho:
- Olha, gostas de sonhar?
- Sim, adoro. Mas não tenho conseguido.
- Então?
- Tenho pesadelos com os meninos de África a pedirem-me o pão que não tenho, ou os meninos das guerras a pedirem-me a mão que não consigo estender...
- Mas quero-te propor um sonho diferente. Estás interessada?
- Sim, diz-me.
- Fecha os olhos. Isso. Agora imagina um lugar onde sintas o cheiro da terra. Olha em volta e vê as flores que saem dessa terra. As suas cores, o branco dos malmequeres, os amarelos dos girassóis, os vermelhos das rosas. Vê como elas estão lindas, cheias de um perfume indescritível. Agora imagina as árvores, todas com um verde intenso, cheias de galhos enormes e que te vem abraçar, como braços amigos. Olha os animais que se aproximam, parece uma arca de Noé, cheia de todas as raças. Olha os cães e os gatos que se agarram ao teu corpo, e o tigre, a águia que pousa no teu ombro, o cavalo que se aproxima e te olha docemente, o mesmo o panda que se senta ao teu colo. E olha o céu. Vês o azul que ele é. Tão bonito, com aquela bola enorme no seu centro, um bola de fogo, cheia de um calor próprio, que te faz sentir viva, cheia de força, de alegria. Consegues sonhar com tudo isso?
- Sim, e é tão bom. Posso viver ali?
- Podes. – e a noite sorriu.
- Eu quero viver ali, porque tudo tinha cor, tudo era tão sereno e viviam todos em harmonia. E sabes, tu não me disseste, mas vi crianças...
- Viste?
- Sim, e sorriam, brincavam e saltavam, estavam livres das guerras, vi um sem as amarras, corria descalço, mas brincava com as flores e as borboletas que esvoaçavam. Havia outro sem fome, que comia as bagas e sorria com uns bigodes enormes, de seguida saiu correndo com um tigre e estavam felizes. Junto das árvores, crianças que já não são abusadas trepavam os troncos e jogavam às escondidas sem medo das sombras. Naquele lugar não há televisão com noticias feias, nem consolas com jogos de guerra, não há homens maus a roubarem ou a matarem com carros, não havia estradas, nem o perigo de andarmos na rua. Vi crianças sem instrução atentas num pequeno grupo de alunos, sentados numa roda, no chão, a escutarem uma criança que sabia ler, desfolhando as histórias de um livro tão bonito.
A noite ficou rendida ao sonho da menina. Tão rendida que começou a lacrimejar umas gotas de chuva, com a alegria estampada na via láctea e no seu coração mais próximo, a lua. E foi quando a menina ainda lhe disse:
- Obrigado noite, obrigado pelo teu conselho para tornar o mundo ainda melhor.
- O meu conselho...- estava agora um pouco perdida.
- Sim, já sei como posso fazer com que o mundo seja melhor, todos os dias.
- Então?
- Sonhando. O sonho é de facto o que nos pode salvar e fazer acreditar que com o sonho não podemos mudar o mundo, mas podemos mudar a nossa visão do mundo. E passando o sonho aos outros eles também poderão fazê-lo e podemos ir construindo um mundo melhor. Sonhando.
- Ora, agora foste tu que me deste uma lição...afinal basta seguirmos os nossos sonhos, não é, menina....desculpa, mas não fixei o teu nome?
- Sininho. O meu nome é Sininho.
- Sabes que és muito Especial, Sininho?
- Obrigado, mas tenho já um sonho.
- E qual é Sininho?
- Fazer com todos sejam Especiais.
- És a minha heroína.
A noite sorriu com Sininho e ficaram as duas abraçadas pelas horas fora, até que o dia veio acordá-las.”
- Sininho, amor, vamos embora?
- Já vou.
Tirei os pés da água. Refrescou-me neste dia tão quente. Tenho de ir. Tenho um sonho Querido à minha espera, um sonho que também já mudou o meu mundo, através dos sonhos. Ele sonhava comigo e eu sonhava em ser feliz.
Afinal o poeta sempre teve razão, o sonho comanda a vida. Não podemos mudar o mundo, mas podemos mudar o nosso mundo, mas se não sonharmos nunca vamos mudar nada.
Nesta casa eu madruguei sonâmbula
Havia raios de sol quando entrei nela
Havia elfos e duendes, gelados e doces
Sentada numa cadeira de balanço
Estava a noite, dormindo com o sonho nos olhos
Fiquei no silencio dos passos
Queria resplandecer a manhã
Gigantesca frescura que me recebeu com gnomos
Sinos que batiam na entrada
Chamando os anjos dos meus contos
Pela frincha espreitei e vi a sala
A bagunça que o mundo mexia
A porta fechada separava-me daquela lixeira
Estava fada, sem madrinha, só naquele alpendre
Onde os átomos do entusiasmo mexiam me mim
Queria limpar a sujidade do compartimento
Queria transformar numa fábula a fantasia
Ser heroína dos fracos e amiga dos fortes
Queria apenas a história que se conta por pequena
A Alice que no pais maravilhado
Ficou encantada e assim o tornou mais perfumado
E com a varinha de condão
Agarrada à minha mão
Uns pós perlimpimpim
E o mundo virou assim
Um simples sonho de criança
Qual cor e doçura que alguém pensou
E todos se riram e saltaram
Onde a vida
Apenas é a porta de entrada e saída
E onde apenas os duendes nos dão uma oportunidade
De vivermos, como anjos.
Ass. Sininho.