Dia 3.
O acordar é sempre aquele momento de renascer, de despertar para uma nova vida, um novo momento, uma nova oportunidade. Depois de mergulhados num coma sonolento, durante as horas que desenharam a noite, abrimos os olhos com o nervosismo na retina. Queríamos, desejávamos, ansiávamos em descobrir se a aventura do dia anterior fora mesmo real. E foi. Atrasamos um dia. Mas, a tal mensagem que parecia tomar forma, começava a falar-nos, a dizer-nos que estava tudo sob um controle remoto, uma força que nos empurrava para um sentido lógico. As pernas estavam preparadas. As mochilas idem. As roupas, as botas, os pensamentos, as mãos, as camisolas ou polares para os mais receosos ao frio, tudo estava preparado e pronto para darmos inicio. A manhã surgiu clara, com o sol a pontificar no mar azul de um céu que tentava arranjar espaço por entre as inúmeras montanhas que nos cercavam. Um pequeno almoço repleto de entusiasmo, de algumas risadas espontâneas e de um fulgor arrasador. Saímos em passo curto, com o sangue a ferver dentro dos nosso corpos. Queríamos subitamente saber tudo, ver tudo, absorver tudo. Mas é impossível fazê-lo. E logo nos detivemos nessa verdade. Por cada passo que dávamos perdíamos algo, algo que ficava nas nossas costas, no nosso passado, e que talvez pudesse ter feito parte desta história. Mas isto acontecia porque começávamos a constatar uma quase infinita rede de sensações. As pessoas que cruzávamos, as mulas que carregavam, as casas, os ribeiros, os caminhos, as árvores, as pedras, os sentidos, o ar, a terra, os cheiros, as conversas, o silencio, as historias...
O grupo definia-se pelas personalidades diversificadas. Colamos algumas “alcunhas”, desde uma má circulação sempre pronta na resposta, um ranger “mafiosi”, um traumatologista bem disposto, um jornalista desesperado por um cigarro, uma psicóloga que a cada passo se questionava, e um físico sempre moreno, nunca vermelho. Todos guiados por um homem singular. Um guia em jejum, mas apenas de comida, pois atravessou os dias com uma fé invejável, um dom soberbo e exemplar, onde misturava o silencio com pequenos rasgos de sabedoria.
Subimos. Sempre a escalar a montanha, que nos dava um som único. As suas palavras eram esmagadoras ao ponto de ficarmos absortos com a sua dimensão. Cruzamos pessoas únicas. Garrafas de Fanta Orange ( talvez quase bebida nacional, juntamente com o eterno chá de Hortelã), cabras a viajarem em primeira classe ( quem sabe... já diz o povo... sabe), pessoas que adoravam uma pedra branca, símbolo muçulmano de crença em procriação humana. Repousávamos algumas vezes, para água, ou para umas barras energéticas, ou para uns sumos de laranja naturais ( deliciosos), ou mesmo para comermos uns frutos secos. Mas paramos também para o almoço, qual manjar servido entre os 2000 e os 3000m de altitude. Começávamos a pensar que afinal tudo isto era mesmo real.
Mas o real tornou-se perigoso. Um dos irmãos do grupo, um companheiro, um membro daquela nossa fraternidade montanhês, num pequeno descuido, sofreu uma fractura. A baixa deixou-nos apreensivos, pensativos, algo nervosos. O dilúvio, agora esta baixa, seria prenúncios de negativos súbitos? A sorte da proximidade de uma mula, esse transporte magnifico por estas bandas, ajudou a levar para o acampamento, a 3270m de altitude. Chagamos a um vale que recebia no seu leito um abrigo de montanha francês. O acampamento base do Toubkal. Aqui as culturas eram diversas, as línguas multiplicavam-se. Olhávamos em redor e éramos desde logo sufocados pelo erguer de cumes sublimes e elevados. Soavam no ar os sons de vários corvos, ou mesmo a forte enxurrada de um ribeiro vizinho. Jantamos, à luz de velas, um banquete servido com humildade, com a atenção de um chefe cuidado. E sorriamos. Soltamos gritos de união. Sentíamos o propósito de nos termos encontrado ali, naquele lugar, daquela maneira. Escrevíamos os nossos nomes na vida do próximo, trocávamos pequenas historias, sorrisos, abraços, carinhos momentâneos mas eternos, enfim, estávamos fortes, crentes numa frase e num propósito:” A União faz a força.”
Mas era chagada a hora de repousar. Encrostados na diversidade e quantidade única de roupas, aconchegámo-nos nas tendas, em busca de uma temperatura mais cómoda do que o frio intenso que a noite nos tinha trazido. Humidade quanto baste. Mas era noite. Nevoeiro. Silencio. Montanha e silencio.
Dia 4.
Acordamos com frio na pele. Estranhamos a temperatura. Verão em Portugal e agora sentimos que estamos frágeis aos olhos do dia. As despedidas de um dos irmão do grupo torna-se pensativa, pois ficamos ainda apreensivos por ele e por nós. O que nos espera afinal? Vamos começar a caminhada em direcção ao sol, ao céu, ao tecto que se abate nas nossas cabeças, vamos caminhar para o desconhecido. Serão 1000m sempre a subir. Assim que fazemos a primeira meia hora, logo nos apercebemos que o dia não será fácil. A visão imensa sobre o refugio deixa-nos perplexos. Sinto a vertigem da fragilidade perante tamanha migalha que é o meu corpo. O silêncio continua a ser o som que escutamos. Fomos o ultimo grupo que partiu do refugio. Uns já desciam quando nos cruzamos, eles cheios de vitalidade, enquanto nós começávamos a sentir a ausência do oxigénio, esse presente que a natureza nos oferece assim que somos concebidos e todos os dias o esquecemos. O grupo torna-se lento, enquanto vamos ficando deslumbrados com o vale, as pedras que se tornam infinitas, as conversas dos que passam, a desorientação dos nossos receios. O calor substitui o frio. Agora sentimos a necessidade de tirar de nós a roupa que carregamos enquanto tínhamos o arrepio da humidade. E chegamos aos 4000m. Aqui eu padeci. A cabeça estava carente de oxigénio. As pernas tremiam. Sentia que não podia fazer esperar aqueles, que heroicamente, subsistiam ao sofrimento da subida. Deixei-os ir. A minha visão fixou-se no guia. Que homem único, sem nunca me cansar de o repetir, pois enquanto eu desidratava por falta desse outro bem essencial e tão esquecido, a água, ele mantinha-se firme, forte e ciente da sua crença, do seu jejum. Magnifico. Olhei em volta, e fiquei pasmado com a imensidão do Atlas. A distancia do meu olhar perdia-se no infinito desta cadeia de montanhas que circundam a minha existência. Fiquei absorto. Fiquei rendido. E veio a voz. Aquela voz interior que me dizia e falava sobre as pessoas, sobre a vida, sobre a essência. E nesse momento tive sede, o meu ser precisava de beber. Mas a inexistência desse liquido fez-me descer. Mas fui deixando recados, pequenos papeis escritos para os heróis do Toubkal, que foram aos 4167m de altitude. No caminho, feito na solidão de mim mesmo, a voz não me abandonou. Foi-me dizendo, enquanto os meus olhos banhavam-se em lágrimas, os segredos, o percurso dos meus medos, das gaiolas que teimo em armar dentro de mim, foi-me dizendo que afinal o meu nome é apenas um ponto na ínfima existência da Vida. O meu ego destruía-se a cada passo. Ficava esmagado, entalado no meio dos pensamentos.
Campo base. Espera. Cansaço. Refrescar a pele. E espera. Esperava pelo grupo. Fiquei parado durante quase 2 horas até vê-los de novo. Vinham exaustos, mas felizes. Descansados pelos bilhetes que encontraram, sabendo que eu não estaria mal. Eu dei-lhes a boa nova de que o irmão fracturado afinal não estava tão mal quanto chegamos todos a temer. Ficamos felizes. Estávamos felizes. Mais uma etapa. Almoço. Outro manjar. Descanso. Repouso para recuperar as forças. A noite chegou. Um homem abordou-me. Francês. Falamos de tudo, das paixões, das montanhas, das pessoas, da vida e descobrimos que ambos escrevemos. Que conversa, que momento. A delicia da linguagem perde-se no tempo, esse relógio que continua parado por estas bandas, onde sentimos que apenas podemos viver intensamente cada segundo que vivemos.
A hora de dormir chegou. Os olhos fecharam-se. Amanhã chega outro dia. Amanhã outra etapa. E dizemos boa noite.
Dia 5.
Durante dias os nossos corpos mal sentiram a frescura de um banho. Estamos habituados a acordar em nossas casas com a água a escorrer pela nossa pele, mas aqui a única coisa que escorre é mesmo o desejo de prosseguir, de descobrir, de sentir. Difícil é abstrairmo-nos do que nos rodeia, aliás é impossível.
O pequeno almoço, sempre igual, mas sempre delicioso, pelas conversas, pela troca de ideias, pela ansiedade do desconhecido.
Caminhamos, subindo 400m, por carreiros de pedra solta, com os músculos a serem colocados à prova de uma resistência ímpar. Comecei outra batalha. A minha visão perturba-me a alma. Um medo de pequeno. Vertigens. Ao longo dos anos fui combatendo-as e conseguindo vitórias improváveis. E aqui sabia que iria conseguir outra. É uma das tais gaiolas que pensamos não existirem, até elas nos enclausurarem no nosso intimo. Mas eu não podia dizer nada a nenhum deles, não pelo lado da fraqueza, porque fracos somos todos, mas porque o grupo precisava da minha estabilidade. E eu precisava da estabilidade deles. É esta a força de um grupo. A confiança, o sabermos que todos são necessários e todos são fundamentais para todos podermos atingir juntos o nosso objectivo. E caminhei, sempre controlando o meu ser. Mas o estado de viver e experienciar o cada passo que dava era também superior a todos os receios que possam assolar-nos. A subida foi intensa, debaixo de um sol que cortava-nos de suor, de um banho de água que íamos sentindo a necessidade de hidratar. E aos 3600m de altitude dá-se a surpresa das surpresas. No meio do nada, o sitio onde o abismo se encontra com o abismo, um outro homem singular, sozinho no seu mundo, vendia Fanta e Coca-cola. Que momento. Afinal a vida surpreende-nos a cada momento. Depois de olharmos os contrafortes do Toubkal, onde o Vale arrebatava os nossos pensamentos, este local, a frescura de um refrigerante que parecia uma quase salvação. A descida esperava-nos, até ao acampamento. Mas antes havíamos testemunhado um outro fenómeno, o das mulas. Nós cansados, exaustos, vertiginoso ou pensativo, e um animal que carregava uma inúmera multiplicação de peso a mais do que nós, sem se queixar, sem pedir nada em troca, fazia o mesmo caminho, mas em metade do tempo. Mula não é um nome feio, é um elogio. Que fique aqui registado.
A descida foi feita por um desfiladeiro, onde as pedras deslizaram e formaram um amontoado, onde 80 e tal curvas foram contadas, e onde a pique descemos até aos 3000m, sitio onde as tendas já nos esperavam. Um local único, como todos, como tudo o que nós sempre fomos vivendo e sentindo. Mas aqui estávamos sós. E o tempo era ainda mais parado. Um pequeno ribeiro que ajudou a uma limpeza mais localizada, mas com uma água fresca e deliciosa. E vieram os outros convidados. Os rebanhos de cabras que todos os dias sobem e ao final do dia descem. Acompanhados pelos seus fieis cães e pastores, elas ecoavam pelos montes e montanhas adjacentes. Era o som que latia como uma melodia. Os nossos olhos perdiam-se no horizonte, nos rebanhos, na cordilheira, na criança que participava da caravana, nas mulas, na lua, no sol. Mas perderam-se por momentos num daqueles segundos que transcendem a essência, o nascimento, a vida a acontecer. Uma cabra deu à luz, mesmo perto de nós, à luz de um dia que já adormecia. Fenómenos que deslumbravam o nosso espírito.
Mais um jantar, banquete, conversas, troca de ideias, partilha de sentimentos. O grupo estava mais unido, forte e seguro. E mesmo que o cansaço estivesse um pouco presente ou o pó do dia, os sorrisos eram cada vez mais sinceros e maravilhados.
Dormir. Na solidão do silencio, mas na companhia de um céu que caia sobre nós, pesado de tantas estrelas. Aquela noite era nossa, só nossa. Tínhamos de a desfrutar e de a conservar, só nos nossos corações.
Continua.