a noite.
Do cimo de um prédio avisto o rio, que dorme no silencio das suas águas. Escuto o barulho dos carros, que desenfreados golpeiam as ruas, arrastando uma corrente de luzes nas sua cauda. Parecem estrelas cadentes desorganizadas, caindo de esquina em esquina. Meia dúzia de pessoas palmilham as ruas, caminhando apressadamente, fugindo de algo, talvez. As casas parecem acolher os corpos fustigados pelo dia, abraçando-os no seu leito e deitando-os no seu ventre. Deixo-me cair sobre a cidade. Escuro, apenas brilhando a lua que se encosta à imensidão do meu corpo, chego. Vejo alguém caído num banco de jardim, tombado pelo álcool, vitima de mágoas profundas. Vejo lágrimas que chocam com sorrisos. Vejo gritos que calam pensamentos. Vejo quem morre e quem nasce. Vejo quem apenas espera mais uma noite que alguém chegue e lhe dê a mão. Mas vejo uma pequena criança sentada no beiral de uma janela, nos fundos da cidade. Canta ao vento, dançando uma das mãos no espaço vazio do ar. Tem um vestido rosa, que brilha no negrume da minha capa. Tem uns cabelos claros, oiro que dança na melodia do sopro. Chego por perto. Deixo-me estar, escutando-a.
- O que cantas?
Assustada, pois uma voz que surge do nada, sem olhos, nem braços para lhe tocar.
- Não temas.
- Quem me fala?
- Sou eu, a noite. Sou eu, quem te faz companhia sempre que o sol se vai e a lua se ergue no céu.
- A noite? Mas como? Como posso estar a falar com a noite, se todos os dias da minha vida são noites?
As suas palavras romperam-me como faca afiada trespassa a carne mais profunda. Que bela menina que canta, mas que sonha no escuro. Não conseguia ver seus olhos. Fechados. Bloqueados.
- Mas diz-me note, que fazes por aqui?
- Venho escutar-te a cantar. Tens uma bela voz. Como te chamas?
- Sou Vera. Bela no nome, na pele, na cor dos cabelos, mas feia no olhar. Não posso olhar o horizonte, o mar, o vento, as arvores.
- Mas podes vê-los com os teus dedos.
Ela sorriu. Que belo riso, sereno, suavemente adocicado pelo brilho dos lábios.
- Sabes noite, nós os dois temos algo em comum.
- Então, diz-me.
- Ambos somos solitários, na forma como vimos o mundo, ambos somos felizes, na forma como sentimos a vida.
Aquelas palavras arrebataram-me no coração. Senti uma estranha sensação de arrebatamento. Senti que ela devia sentir-me.
- Queres vir comigo?
- Onde noite?
- Vou levar-te a um sitio em que vais poder ver o mundo e sentir a vida de forma diferente daquela que tens agora.
Ela voltou a soltar aquele sorriso e aceitou. Mas pedi-lhe que enquanto a levava, ela teria de continuar a cantar. E assim foi. Ela voou no escuro do meu corpo. Cantava emocionada. Levei-a junto de uma montanha que se ergue nos arredores da cidade. Lá existe uma enorme arvore, esbelta pelas suas folhas, jubilada pela sua grandeza.
Pousei a pequena. Ela chegou-se junto do tronco e tocou-o. Os seus dedos percorreram todos os locais que vestem a árvore. O seu tacto acordou-a.
- Quem está ai?
- Sou eu minha amiga.
- Noite?
- Sim, trouxe comigo uma amiga.
- Hum, a que me toca? É ela a tua amiga?
- Sim.
Vera assustou-se com a voz da árvore. Afastou-se um pouco, mas logo foi sossegada pela arvore.
- Não fujas. Não temas. Chega-te até mim. Se a noite te trouxe até aqui, é porque precisas de aconchego. Descansa no meu tronco. Eu vou-te dar umas folhas para te aqueceres. Noite sopra a tua brisa quente e deita umas estrelas sobre os meus galhos, para podermos ficar com luz.
- Luz? – perguntou Vera. – Mas eu não consigo ver, por isso não precisas de te incomodar com a luz.
Sorrimos agora nós.
- Porque riem? O que foi que eu disse de engraçado?
- Todos vem a luz das estrelas, minha amiga. Mesmo aqueles que todos os dias e todas as noites vivem no escuro podem ver a luz das estrelas, porque é a luz dos sonhos.
E assim foi, deixei cair umas estrelas sobres os ramos da árvore. Elas brilhavam tanto que conseguiram afastar-me daquele lugar, trazendo o dia consigo. Vera sentou-se, com uma pequena lágrima escorrere-lhe pela face, sorrindo com a luz que entrava no seu coração, que melhor visão se pode ter do mundo e que melhor forma se pode sentir a vida, senão no sonho?
Adormeceu na sua cama. O lençol tapou-lhe o corpo. A vida abraçou-lhe a alma. Eu fui descansar.