podes pensar, podes falar, mas tudo o que escrevas tem o poder de ficar.
11 de Abril de 2016

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Porque cai um homem? O que faz um homem em queda? Grita? Sustem a respiração, contraindo os músculos, para mais rápido desfalecer? Sente o corpo deslizar e faz uma revisão em flashes, de toda a sua breve existência enquanto ser vivo? Clama aos céus por uma ajuda divina? Olha em volta e procura o sentido para o derribamento, para aquele momento decrépito e avassalador? O Abismo é uma curta fronteira entre o início do fim e o fim de si mesmo. Dar o passo, perder do pensamento o receio da consequência, não vislumbrar o que fica ou como fica, apenas centrar na efêmera passada para o vazio, onde os pés já não sustem o corpo, onde a consciência deixa de fazer sentido, onde o esquecimento ganha sobre as memórias, onde o nome se torna pó e o corpo vento. Procurar respostas na queda é encontrar ainda mais perguntas. E o corpo? Qual a sua posição, quando cai? Qual o seu peso, a sua massa física? Pernas que se perdem no ar, braços que apenas caem, perdem a força humana, o músculo. A cabeça é uma caixa de Pandora de pensamentos. De repente, nascem como pequenas sementes, atrofiados durante anos, e que agora brotam, sem nexo, apenas formatando perguntas: Porque é que teve de ser assim? Porquê eu? Que dirão os que esperavam mais de mim? Haveria outra alternativa? Como foi isto tudo acontecer? Porquê Deus? E se...? Seria diferente se...? Merda, porque é que tinha de estar à hora errada no lugar errado? Listas e listas contínuas de questões que se atropelam na cabeça, procurando explicações para o sucedido, sem que elas possam alguma vez evitar, ou voltar atrás, e corrigir o que foi feito e o que está a acontecer. E o corpo, cai de costas ou de frente? Poder-se-á escolher como se cai? Controla-se o corpo, na luta contra a gravidade, a força centrifuga? A queda é igual em todo o seu sentido, em todo o seu momento. Neste ensejo podia haver a sensação de Super-herói, transformar o casaco numa capa multicolor, como nos filmes animados que percorreram a nossa vida de miúdo, onde o corpo flutuaria como uma pena, deixando de ser peso em força, sempre a descer, e conseguir assim controlar movimentos, escolher direcções, para cima, para baixo, para o lado esquerdo ou direito, em diagonal. Conseguir dominar a vontade do indomável e contornar a perspectiva do destino. Super-herói seria regressar ao ponto de partida, pegar em todos os que olham o Abismo, sorrir-lhes como sinal de esperança e levá-los para um lugar seguro, longe daquele inferno absurdo. Podia ser uma casa de família, os braços da pessoa amada, um sorriso de um filho que o aguarda, os lençóis de uma cama que o resguarda. Ou sair no voo celeste do espaço, atingir as estrelas, e no infinito mudar o sentido do planeta, capacidade de tornar o passado em presente, viver o antes de acontecer, sabendo que iria acontecer, mas evitar que acontecesse, e assim prevenir, o embate, explosões, quedas, gritos que ficam perdidos, corpos que não tem posição exacta quando caem. Esse seria o tempo de Super-herói, o mesmo que conseguiria evitar a queda. E assim, nada teria acontecido, nem mesmo o que seria escrito, naquelas folhas brancas, que caem como corpos perdidos, no abismo da verdade. Como se pode evitar a queda? Escrevendo que não se cai? Quando se cai, não se pode descrever outra coisa, é o firmamento da descida… mas até onde se pode e se consegue descer?"

publicado por opoderdapalavra às 14:22
01 de Abril de 2016

Gostava de vos falar de um projecto. Não um qualquer, mas um que pode fazer uma diferença. A diferença de dar uma oportunidade a quem a deseja. A quem sonha em conseguir ter um vida diferente, uma vida dita normal, sem percalços, sem desvios abruptos da sua estadia neste mundo. Falo do Projeto Amélia e falo da possibilidade de várias crianças com cancro e respectivas famílias, consigam ter a oportunidade de, sem abdicar dos seus lares e das suas vidas, conseguirem encontrar uma resposta positiva na luta contra essa doença que tanto decapita o mundo contemporâneo: o cancro. Tenho participado no que posso para ajudar este projeto, como a venda do meu livro " Senhores da Vida e da Morte", com a oferta de outro livro de um amigo escritor que padeceu de cancro. São apenas 10 euros que podem ajudar imenso tantas crianças. No mínimo precisamos de 25 euros para ajudar uma família e sua criança. Falamos de vidas que nada tem e ainda conseguem ficar sem nada para lá do nada. Imaginem vocês sentirem que o vosso percurso é traçado por pouco e de repente esse pouco ainda se transforma em nada. É o que acontece com estas crianças em Myanamar. O Fernando, a quem desde já presto a minha mais sincera homenagem, quer dar uma oportunidade a estas crianças, transportando-as e às respectivas famílias, de avião, para o único Hospital que pode fazer a diferença. Em baixo de todo este texto estarão as orientações para poderem ajudar neste projecto. Projecto que nos próximos dias desenvolve uma iniciativa única no aeroporto de Lisboa. 24 dias com 24 personalidades diferentes a viverem 24 horas no aeroporto. Partilhem esta ideia, ajudem este projeto, sejam solidários pela vontade em darem uma oportunidade, sejam solidários pela vontade em conseguirem partilhar um pouco de vós com quem precisa de muito de nós todos. Quem sabe, um dia essa pessoa não virá fazer a diferença nas nossas vidas...e pensando nisto, resolvi escreve um pequeno texto, ficção, sobre algo que a vida nos ensina tanto e tanto nos esquecemos... Que todos estamos ligados e todos podemos fazer uma diferença.... "Fazia frio naquela madrugada. Frio que vinha abraçado aos pingos grossos que desciam das nuvens e batiam com força no corpo de Lyan. Encolhido no próprio corpo, resguardava-se da sensação de espera, aquela emoção de esperança que invade a mente de desenhos e desenhos, muitas vezes irreais. Procurava olhar todo o parque de estacionamento, tentando desviar a atenção daqueles pensamentos que o dividiam em duas partes. O Lyan positivo do Lyan negativo. A ideia de receber uma notícia boa de uma notícia menos boa...aliás, horrível. Alguma vez, caro leitor, sentiu essa fronteira? Aquele arrepio que nos trespassa a alma, provocando um aperto que consome o peito e parece levá-lo de nós? Ao mesmo tempo que queria acreditar que esse mesmo aperto era de amor, de paixão ao ver a boa notícia chegar, soletrada no ouvido como pauta de música e rir, muito, como criança que brilha de brinquedo na mão... A chuva não parava, nem o frio. Ao fundo, o edifício escuro, pintado em cinzas, partilhava uma janela de luz. Uma luz acesa entre tantas apagadas. Junto ao vidro uma silhueta observava. Não se conseguia ver, à distância de Lyan, a descrição desta silhueta. Por isso, pela curiosidade, resolveu aproximar-se, chegar perto. De cara molhada, lavanda pelos grossos pingos que teimavam em o beijar, olhou de perto. Era a cara de uma criança, que soprava o ar sobre o vidro, embaciando-o e depois desenhava. Conseguiu ver um elefante, um pássaro, viu uma bicicleta e até uma flor. E quando o pequeno rapaz reparou em Lyan, embevecido a olhá-lo, sorria imenso. Os segundos foram contados pela troca de olhares. Retinas estampadas um no outro. E uma mão a acenar, com Lyan a acenar de volta. Chegou mais perto. O pequeno resolveu soprar de novo sobre o vidro. E desenhou. De dedo em riste fez um círculo. Do círculo riscou uns olhos, orelhas, cabelos, nariz e...parou. Lyan ficou na expectativa. Silêncios cruzados. Até que ladeou o desenho e o apagou. Lyan acenava para não o fazer. Diálogo surdo que a criança escutou. Sorrir e voltou a soprar. Voltou a desenhar, e no fim colocou uns lábios tristes. Lyan não conseguiu resistir nas lágrimas. Elas assemelharam-se às gotas da chuva. E pegou nos braços e começou a desenhar no ar sem papel, um sorriso. De lágrimas em face, ele gesticulava um enorme sorriso. A criança ficou a fitá-lo por momentos. Pensava num velho palhaço que um dia aproximou-se da sua aldeia. Trazia uma mala de nada. Mas dizia ter tudo lá dentro. Tinha aquilo que mais ninguém conseguia ver, mas que era tudo o que mais se desejava...os sonhos. E abria a mala, reunido no meio de um círculo de crianças, e mostrava o poder de um sonho. Aquele que mais gostou foi a de um homem que trazia a lua consigo. Aquela mesmo que nas noites de verão se arrebita no horizonte, rasga o céu e brilha mais do que as velas da casa. É o pequenote sempre a sonhou a sorrir. Como aquele homem que se afigura perante o olhar, naquele momento de chuva sem lua, a desenhar um sorriso. O mesmo da lua que sempre sonhou. Voltou a respirar para o vidro. E desenhou. Cabeça, dois olhos, um nariz, cabelos soltos, é um enorme, mas mesmo enorme sorriso. Os dois riram-se sem parar. Os dois ficaram ali, minutos ou até mais do que isso, sabe-se lá quanto, a sorrirem, gargalhando sem parar. A Lua estava ali e o pensamento positivo também. Veio uma senhora de branco buscar a criança. Lyan acenou-lhe sorrindo. O pequeno também. E anos passaram. E chegou outra noite. Outra madrugada, mas desta vez sem chuva. Numa velha estação de comboio, Lyan dormia em tremores. Desviado do calor de casa, escondia-se do frio de uma noite de lua cheia. Uma silhueta aproximou-se dele. Baixou-se e olhou-o atentamente. Boa noite. Precisa de ajuda? Não, deixe estar. Porque está aqui no meio do nada? Espero por uma notícia. Que notícia? Se o meu filho está melhor. Mas encontra-se longe do hospital. O que tem o seu filho? Uma doença estranha, que lhe come as entranhas. Estou longe do hospital? Sim, muito longe. Precisa que o leve lá. Eu posso. Há quanto tempo o seu filho está doente? Há muitos anos. Venha, eu ajudo-o. - é quando reconhece Lyan. O pequeno rapaz encontra de novo a sua lua sorridente. - o meu nome é Zian Zian. Lyan. A Lua sorridente. Como? Não interessa. Venha que eu vou ajudá-lo. Mas não tenho dinheiro e a viagem é muito longa. Não interessa. Sabe por vezes um sorriso consegue mais do que uma fortuna para conseguirmos fazer uma viagem difícil. Quando chegaram Zian Zian percebeu que Lyan já tinha o quinto filho doente. Havia perdido todos os outros, é aquele era o último. O último que podia ser o primeiro a ter uma nova oportunidade." www.projetoamelia.org Se preferir, pode ajudar uma criança através de transferência bancária: IBAN GB39NWBK60090570683883 SWIFT/BIC - NWBKGB2L - The Amélia Project C.I.C. Se desejarem adquirir o livro, mensagem para zorbas33@gmail.com Sejam felizes.

publicado por opoderdapalavra às 18:00
23 de Março de 2016

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Ser doido-alegre, que maior ventura! Morrer vivendo p'ra além da verdade. É tão feliz quem goza tal loucura Que nem na morte crê, que felicidade! Encara, rindo, a vida que o tortura, Sem ver na esmola, a falsa caridade, Que bem no fundo é só vaidade pura, Se acaso houver pureza na vaidade. Já que não tenho, tal como preciso, A felicidade que esse doido tem De ver no purgatório um paraíso... Direi, ao contemplar o seu sorriso, Ai quem me dera ser doido também P'ra suportar melhor quem tem juízo. António Aleixo, in "Este Livro que Vos Deixo..." Ao sentar-me naquela cadeira de laranja em riste, vi-me de frente para uma extensão de palco que escondia uma certa loucura humana, qual sonho e ilusão desenfreada do coração de um homem. Havia andaimes que serviam de casas, abrigos, comboios sonhados, terraços com vista sobre a cidade que se imaginava, ruas e vielas que se escondiam. Havia roupas velhas que abrigavam corpos doentes, colchões de cheiro vadio, pôsteres de mulheres desnudadas, seringas levianas. Havia uma cerca, divisão que divide em duas partes o que o homem podia juntar numa só. E havia a Porta. Paraíso. Vivemos tempos de um purgatório sofrido, despido de identidades, ausente de referências que nos conduzam. Somos mortos vivos à entrada do lugar prometido, esse Paraíso incomum de sonhos estragados, ilusões destruídas e promessas não cumpridas. Este é o país que vivemos, este é o mundo onde "uma lei reúne todos os fodidos da vida". Este é o mote de uma viagem a um mundo subnutrido de vida humana, ao universo onde as seringas são os pedaços de comida, os fumos e as pratas as brincadeiras de crianças grandes, e os rádios o fio que conecta os restos da mente à vida que ainda sobrevive. Porta Paraíso fala-nos em metáfora. Metáfora de quem sofre no corpo as repressões de uma sociedade perdida no seu conteúdo, que anda em busca de uma resposta, uma porta de saída, qual paraíso inexistente nesta "puta" de vida. Mas "puta" só existe essa forma andante de se viver, sem sobrevivência nenhuma, que é a loucura de se ainda sonhar. Sonhar fugir, não como quem se esconde, mas como quem ainda persiste acreditar que lá longe, onde o terra toca o céu, se pode encontrar a vida que um dia fugiu. E há as personagens, pessoas de nomes, nomes que perfilam um percurso de pérfida ferida humana. Um ferida que sangra sempre que mais um braço é trespassado por uma agulha e o corpo amaldiçoado. Uma ferida que mostra o quanto humanos se esquecem de humanos. O quanto humanos virão ratos dos esgotos do pensamento dos homens. Ratos que são jogados no firmamento dos fundos do mundo, onde se escondem dos olhares dos outros. Sente-se bem, naquele pedaço de madeira fundo, que somos plateia insensível, olhando os filhos do nada, sem reacções, mostrando apenas a velha piedade hipócrita que vem do desejo constante de eliminar essa rataria que lavra os cantos e recantos do nosso mundo. Esta peça é uma ópera de palavras. Uma viagem ao ritmo de um texto muito bem construído, repleto de ícones sociais de um Portugal que se abandonou a si próprio, desacreditado e mal tratado. É um constante conflito entre o sonho de ser e a dor de já não ser. A velha dicotomia humana entre o ser e o parecer, qual demanda filosófica entre a escolha e a razão. Mas a razão é uma idosa forma de se morrer devagar. A escolha uma renuncia rebelde a essa morte, um fôlego de respiração que nos mantém à tona. À tona dos sentidos, mesmo que estes sejam meros pedaços de promessas por cumprir. À Porta do Paraíso fica-se na dor da diferença, não da natural, mas da diferença preconceituosa, daquela que define esse lema do bem e do mal. Mas afinal, nas catacumbas do purgatório, o que é essa farsa do bem e do mal? Fazer teatro com paixão é trazer essa apaixonante forma de viver para a plateia, criando uma ficção nas nossas mentes, uma reflexão nos corações, uma lágrima nas revoltas e um sorriso nas convicções. E é isto que esta peça traz. Paixão e muita. Sente-se a cada palavra, a cada entrega das personagens, a cada nota da magistral música que vem dos fundos. É uma peça de variadas personalidades, desde os que falam pelas palavras, aos que as perderam na boca, ficando pelos que fazem das palavras uma mera circunstancia de lugar. Brinca-se sem brincar. Chora-se, ri-se, pensa-se, sente-se, estranha-se e entranha-se. Mexe e remexe. Gosta-se, ama-se. Teatro sem paixão é uma doença sem cura. Teatro com esta intensidade, no texto, na construção, na sonoplastia, nas personagens, nas pessoas que se veem e nas que se escondem, é uma loucura que devia ser preservada, é um fôlego de vida numa morte anunciada. Porta Paraíso não é só uma peça de Teatro, é uma viagem à consciência de um povo. Porque afinal... "Já que não tenho, tal como preciso, A felicidade que esse doido tem De ver no purgatório um paraíso..."

publicado por opoderdapalavra às 07:30
13 de Março de 2016

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Zero. Ausência de número. Começo. Recomeço. Algo que nunca termina, que nunca se fecha. Via de levantar de novo. O erguido do acabado. Aquele que se limpa, renova. O nome que fica, que nunca deixa de ser, sem se desfazer, se escreve de novo. Zero. Ponto de partida. Partida para outro ponto. Ponto a ponto, se vai, assim, de número em número, sem que os números atropelem, a contagem, dias, noites, tempo que passa e não volta. Zero. Número fechado. Redondo. Número arrumado. Passado alinhado. Sem trás nem frente. Sem frente nem atrás. Tudo se abre e tudo se fecha. Tudo o que não se fecha, se abre de novo. Porta vazia. Chave que encerra. Encerrado no número que nada tem. Nada que já não existe. Ausência de vida, e vida sem ausência, ausente que já não persiste, corpo que se abraça de novo. Zero. Número para quebrar. Transformar. Riscar de um lado ao outro. Gritar. Nos confins de um mundo sem número. Libertar. Levantar os braços e redesenhar. Zero. Agora. Princípio. De tudo o que foi. Mas de tudo o que vem. Momento que está, no agora dos sentidos. Zero. Afinal quando deixa de o ser. Agora. De novo, em novo, que, sempre foi. A contar. Um...

publicado por opoderdapalavra às 09:34
14 de Fevereiro de 2016

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Quase um ano depois, consigo escrever-te. 

Acredita que não é fácil escrever para quem, como tu, me deixou com um sabor meio agridoce na saliva. Fazia semanas que procurava o teu numero, aquela sucessão que dita uma ligação por meio de uma qualquer onda de transmissão. Não sei te explicar melhor o que é isso de ligações entre telemoveis. ( sei que já te ris só de escrever isto). Foram dias após dias a pensar que devia-te algo, que devia-te uma vez, uma palavra, uma historia, um desabafo, um palavrão contra tudo o que te corria no sangue, uma anedota em que nos riríamos como pequenos putos de escola que se riem de tudo e de nada. Nesse telefonema tinha algumas coisas para te contar. Não me recordo já o que era, mas tinha, como sempre falamos mais de nós, do que escutamos o que o outro tem para nos dizer. Mas sempre foi assim e tu sabes, porque também o fazias. ( sim, já escuto de novo o teu rir, porra, tanto te ris, isso ai deve ser mesmo de rir e não de chorar).

E partiste. Naquela manhã. Desde esse dia que não consegui ao certo escrever-te seja o que for. Aliás, nem sei se o que estou a escrever é para ti ou para aliviar-me a dor de não te ter por perto, amigo. Falamos de tantas coisas, de tanta estupidez, de livros, filmes, de amor e desamor, falamos de vida e de morte, falamos a mentir um ao outro, a dizermos a verdade um ao outro, a falarmos do nosso Porto ( que achavas sempre que ele ia ganhar o campeonato, mesmo tu não percebendo nada de futebol apenas que os de riscas azuis e brancas são os melhores… e não te enganavas). 

Sabes que deixaste uma porcaria de sentimento. O da saudade, porra. Aquele com que nos tentamos enganar que conseguimos amar alguém sem a vermos. E conseguimos, mas não é a mesma coisa. Falta essa tua imagem meio simplista, de pessoa normal, que vestia sempre um pouco da mesma forma, 

que tinha conversas sobre tanta coisa que por vezes nem tínhamos uma conversa de jeito,

que tinha um péssimo hábito de gostar de estar com tanta gente que até se esquecia de estar consigo mesmo, 

que adorava estar com aqueles que verdadeiramente sempre soube que o amavam, só para sentir que afinal conseguia ser alguém normal, anónimo perdido por entre gente de bem, um menino que gostava de abraçar aquela doce sensação de ser apenas respeitado. 

E hoje resolvi, tomei a coragem no peito, e escrevi para ti. Não foi o medo de não saber escrever para quem o sabia fazer. Sabes que nunca me senti diminuído por ti, apesar confesso de ter chegado a sentir, algumas vezes, aquela inveja surda e muda que nos leva a idolatrar alguém que não precisa, aliás ninguém o precisa, agora sabes. Resolvi escrever-te sem aquelas formosas frases que todo o escritor gosta de redigir, para que o impressionismo contemporâneo continue a perdurar. Não te escrevo com todas as formulas que se aprendem quando se coloca palavras numa pagina em branco. Sei que acreditas no que escrevo, mas hoje não é esse que te impressionou com os seus livros, que te escreve. Hoje não. Hoje quem escreve é apenas aquele que sempre conheceste, e aquele que sempre adorou conhecer-te. Não por esta coisa de livros, escritos ou nomes que várias pessoas conhecem e conseguimos impressionar. Hoje escrevo-te da única forma que sei fazer para ti. Com a Amizade.

Escolhi os teus 40 anos. E escolhi partilhar contigo a conversa que eu tanto queria ter, e afinal, acabo por tê-la, hoje, no dia que fazes 40 anos. Bem, espero que gostes de conversar comigo… prometo não ser tendencioso. ( e pronto, voltas a rir…)

 

“Vou marcar o teu numero. Não sei onde estará esse mesmo numero, mas no meu telemovel ainda está associado ao teu nome. Olha está a chamar. Sinto-me um pouco nervoso, não sei como irás atender do outro lado. Faz algum tempo que não falamos. Continua a chamar. Porra, estás-me a deixar ainda mais nervoso. Atende, acaba logo com esta agonia. Olha caiu a chamada. Mas volto a insistir. É mesmo teu. Até agora que estás em todo o lado, que estás no sol, no céu, nas nuvens, nos livros, nas pessoas, no ar que se respira, nos sorrisos de quem te ama, nas palavras, até neste texto tu estás… até agora tu gostas de ser diferente e não atender logo à primeira. Estás armado em quê? Celebridade?…

  • Tou.
  • Estou. Sou eu o Carlos. Atendeste.
  • Claro. Porque pensavas que não ia atender?
  • Não sei. Até já estava a praguejar sobre o teu habito de não atender à primeira. ( e voltas a rir às gargalhadas)
  • Estás bom?
  • Sim. E tu?
  • Eu estou bem. Há muito que não falávamos.
  • Pois. Também sentiste isso?
  • Não senti, apenas sabia que não falávamos em palavras, mas fomos falando em silencio.
  • Pronto, continuas o mesmo, com a resposta na ponta da lingua. Não mudas em nada. Nem aí.
  • Claro, serei sempre aquele que conheceste. E sei que tu também o serás assim. ( Ok ok, ele dizia mesmo isto, não estou a inventar…) - Não tenhas a necessidade de te justificar aos outros. 
  • Olha, Parabéns.
  • Obrigado. Não te esqueceste.
  • Claro. E 40. 
  • Pois, pena de não os ter celebrado com um abraço.
  • Mas sabes que tens os braços de todos os que te amam à tua volta.
  • Sei e sinto isso. 
  • E olha, sabes uma coisa, tenho é uma noticia menos agradável para te dar.
  • Então?
  • Continuas a fazer anos no dia dos Namorados.
  • O quê? Porra, e continua a não haver lugar nos restaurantes?
  • Nada. Está tudo a querer mostrar hoje o amor que não mostram os outros dias.
  • Enfim. Mas olha quando mudarem a data avisa-me, pode ser que nesse dia possamos ir àquela cervejaria que tanto gostávamos. Ah, e com o Cesar claro… porque afinal tudo é apenas uma terapia e não uma cura. ( e voltas a rir à brava).
  • Combinado. Não te esqueces-te. 
  • Claro que não. E mais novidades?
  • O Porto ganhou ao Benfica.
  • Eu não te digo sempre? Vamos ser campeões este ano. ( Sempre o mesmo.)
  • Olha e quero-te dar os Parabéns sobre algo mais. Pelo teu novo livro. As Curiosidades. Fantástico.
  • Obrigado. Já vi. Mas devo isso tudo à minha familia. Eles são mesmo especiais.
  • Pois são. Ontem almocei com o teu irmão. Falamos e rimos. E bebemos umas cervejas das boas. 
  • Eu vi. Ficaram bem corados. 
  • Isso foi do calor humano. ( e rimos às gargalhadas )
  • Olha Carlos tenho de ir. Sabes que isto de fazer anos é uma correria. Tenho de atender a outras pessoas. Tens escrito?
  • Alguma coisa. Mas ando numa de deixar andar o rio, ele chegará a alguma margem. Estou concentrado na venda dos meus livros para ajudar um Projecto muito importante. E quem compra tem direito a um livro oferta, especial.
  • Eu sei, vão ficar admirados. Mas olha não deixes de escrever. Não te vou dizer agora que o sabes fazer muito bem. Tu sabes. Tu sentes isso. Vou-te dizer outra coisa. Não deixes de amar o que sempre amaste. Não deixes de amar quem te ama de verdade. Não deixes de te apaixonar pelos dias, pelas horas, pelos minutos e pelos segundos. Não deixes de fazer aquilo que gostas de fazer. Tu sabes que estas palavras andam tantas vezes a serem clamadas pelos sete cantos do mundo, mas elas são demasiado reais e verdadeiras. E nunca te desvies do teu caminho, quem quiser estar mesmo contigo, quem te ama mesmo, vai estar lá. E ri-te sempre de ti mesmo. É das melhores coisas que podemos fazer.
  • É pá estás-me a deixar com uma lágrima. Parece conversa de despedida.
  • Despedida não. Vais ter de me aturar o resto da vida, mesmo para lá do tempo. É apenas para dar um lado sério a esta conversa. 
  • Olha, gosto de ti puto.
  • Puto?
  • Sim, continuas a ser mais novo do que eu. ( e rimos à grande.)
  • Olha, podes-me contar a anedota do D.Corleone?
  • Claro. 

E ali ficamos. Rimos e até deitamos umas lagrimas. Mas a conversa acabou por se perder pelo tempo. Já nem me lembro quem desligou primeiro. Mas olha amei falar contigo. Vou continuar a fazê-lo. De facto, para quê adiar aquela conversa que tantos desejamos ter com aqueles de quem gostamos?

Grato Amigo. E de facto…o Fio não foi cortado. E o teu nome não deixou de ser proferido. Aliás como um dia escreveste…

“No fim não morremos todos. Há os que morrem e os que duram para sempre.”

Abraço forte Luis.”

 

 

publicado por opoderdapalavra às 21:42
19 de Janeiro de 2016

 

 

 

Como é que se escreve a palavra fim?

Aquela que é difícil de proferir, é dura de escutar, é terrível de sentir.

Aquela palavra que fecha a porta, a tranca e esquece-se onde deitou a chave.

Aquela que nos deixa num oceano vazio, onde as marés de palavras foram derretidas pela devastação dos sentidos.

Como é que se percebe uma palavra que se esconde por entre maleitas, por entre expectativas, ilusões sonhadas. Palavra que não deixa que o amor se revele, que impede que o coração fale, que os corpos se unam. Perde-se o abraço, o conforto de uns braços que protegem. Perde-se o detalhe do beijo, dos lábios que se partilham e se acarinham. Perde-se a carta, com aquelas frases que nos ensinaram a amar, que nos mostraram que a paixão é um inicio e não uma suspeita. Perde-se a memoria, a recordação de todos os instantes que nos tornaram nomes adocicados pelo proferir do outro. Perdem-se anos, esperanças que apenas servem como facas afiadas no peito. Perde-se o riso, até mesmo a lágrima que limpamos com a precisão de um gosto.

Tenho nos dedos a palavra. Procuro, percorrendo todo o universo, precisar onde ficou o dicionário que apagara o fim. Mas não recordo o seu destino. Como se esse caminho fosse suprimido da história, esta minha margem que fugiu da tua.

O escritor fica, envergonhado no seu canto. Despiu a folha de preceitos, deixando-a deslavada, ausente dos momentos que as palavras descrevem. O escritor ficou perdido no firmamento dos pensamentos, que se revoltam, como cães danados, em busca de um pedaço da carne ferida pela palavra. A mesma que procura perceber como se escreve. A mesma que lhe perdeu rasto, mas que no entanto veio no seu encalçe.

E ficam as fotos. Estranha relação com a lembrança. Aquela que decapitou todas as vontades, retirando-lhes a coragem de agir.

Escrever essa palavra tão ínfima quanto efémera é o produto de um chegar. Junto ao morro, onde os pés parecem querer fugir. É abrir o peito e retirar o coração, suspendê-lo junto ao abismo e de olhos em lágrimas, deitá-lo abaixo, para junto do desespero.

Não existem formas bonitas, belas, simpáticas ou meramente poéticas para se escrever tal palavra.

Ela vem com a morte, com a dor de uma partida inesperada, com a passagem de uma saída expectável, com o acenar de um adeus, com o silencio de um até sempre.

Ela escreve um percurso, uma estrada onde os buracos foram mal amanhados. Onde os furos nunca substituídos ou o combustível foi sendo esquecido. E um dia, certo dia pela manhã, pela tarde, ou por uma noite sem estrelas, a palavra chega. Sem bater na porta, sem avisar e entra. Corta, mostra que a estrada já vinha torta, que as desculpas esconderam a sombra que sempre incomodou, que as bermas resvalavam as feridas tapadas com um pó fino levado ao vento.

E fica a imensidão das perguntas. O desgaste de não encontrar uma resposta. E ficam, finalmente, as verdadeiras palavras do sentimento, da vontade de explodir o que no intimo habita. Ficam as virtudes de quem nos fez bem, as saudades de quem gostávamos que ali, junto ao calor de nós mesmos, se aconchegasse e retirasse dos nosso lábios, aquele singelo sorriso. Mas só mesmo o pensamento permite-nos essa memoria. A mesma que suporta todas as razões que nos conduziu às borboletas que semearam no estômago a sensação de comichão, do arrepio de pensarmos que naquele quadro perante os nossos olhos, estaria a beleza dos nossos sonhos. O sonho no sonho. Mas que ficou pela palavra fim. E triste pensar que todo o sonho só ganha importância quando a palavra determina o amanhã. Devia-se perguntar porque é que só quando ela fica descrita nas folhas da nossa existência, é que explode nas entranhas do coração, a vontade de amar quem afinal já foi levado pela palavra.

Como se aceita uma palavra que nos leva tantas frases que descrevem um bater que se apaga aos poucos, de forma tão silenciosa que até se esconde nas esperanças?

E vão-se os momentos, a música, os filmes, as conversas, as intempéries, as desavenças assim como as reconciliações. Vão-se os sinais, os amigos, as surpresas, os discos que se partilharam e os planos também.

Escrevê-la é esquartejar a imaginação. Mas ela traz muito mais. Ele traz no seu dorso uma vontade que o destino fosse diferente. Mas a diferença não impera nas vontades do escritor, porque delas apenas sai um raso pó de saturação, cansaço de tantas palavras desenhar, e logo apagadas por outros que não os seus míseros e já velhos dedos. Mas que não serviram, que não resultaram. Apenas foram sendo metidas no bolso da indiferença. Assim como a borracha que ainda poderia apagar a tinta que escreve a tal palavra.

Afinal, um escrito não se cria sem unir o escritor à sua página. Porque, até este texto, chega ao fim.

Como se escreve afinal aquele fim que nunca se desejou soletrar?

Porque talvez ela apenas chega porque das cinzas se ergue outra árvore, com outros frutos. Afinal não se pode querer incendiar a floresta e desejar que as árvores permaneçam todas em pé.

Como se escreve a palavra renascer?

publicado por opoderdapalavra às 01:49
12 de Janeiro de 2016

 

Não é fácil escrever sobre David Bowie.

Não pela emoção da sua partida, ou porque me posso perder em meras deambulações poéticas por quem não conheço pessoalmente. Ou mesmo porque há sempre aquela máxima de se falar bem de quem já partiu. Não.

É-me difícil porque não é fácil voltar atrás, tanto tempo e remexer em todas as memorias de miúdo que descobria na música um mundo onde se sentia alguém, onde podia perfumar-se com os deleites dos sonhos. E David Bowie foi um dos responsáveis por isso. Regressar assim aos meus 10 anos não se torna doloroso, não pela distancia que essa tenra idade representa, mas porque sinto que perdi de lá para cá. Sim, perdi. Naquele tempo, os meus pais apenas procuravam o melhor para mim e para o meu irmão. Vivia numa casa que não me deixa saudades, mas deixa-me honestidade e humildade. Tinha poucos brinquedos e era inventor de um mundo de arrepiar os costumes. Nunca fui um apaixonado pela escola, apesar de ser pela descoberta, pelo conhecimento. Brincava sozinho com carros e restos de caricas. E os meus pais compravam os primeiros LPs de música. E um deles tinha uma música que assim que a coloquei na ponta da agulha, despertou-me sentidos, alterou-me a ínfima parte da minha existência. Peguei logo na capa daquele enorme disco de vinil, e procurei o nome por quem se escrevia.

Artista: David Bowie.

Musica: Hereos.

Não sabia inglês, apenas que existia uma certa musicalidade no tom das letras. Fiquei por momentos a escutá-la. A voz arrastada, rouca, imperiosa como se escutasse alguém de um outro mundo. Escutei, voltei a escutar, e a escutar de novo. Deitava-me no chão e ficava ali, ouvindo aquela música, sem perceber o que ele dizia, mas que me levava, de olhos fechados, até onde o meu corpo não conseguia ir. Comecei ali a descobrir um mundo dentro do mundo. O meu mundo. Comecei a imaginar as pessoas como pequenos peões de gigantes vindos do espaço e que brincavam como crianças. Moviam-nos e criavam estórias. Deixei-me levar pela ilusão de ser especial, e que um desses grandes seres, pegava em mim e abria-me os braços, como asas, pintando-os de prata e movia-me pelo céu. Percorria terras distantes, onde as casas eram mais acolhedoras do que aquela em que vivia. Onde havia sempre crianças a brincar, longe do frio que rasgava a pele ou da chuva que molhava o quarto. Havia praias com areais que se perdiam na vista. Ia até à minha terra, imaginando todos os contos que os meus pais partilhavam comigo. Um lugar muito longe, onde teria de andar mais do que dias apenas para lá chegar. Tinha muito sol, tinha água quente no oceano, tinha pessoas que me abraçavam, tinha locais para correr, pular e árvores para trepar. Tinha crianças de cores diferentes da que estava habituado, mas que eram divertidas, bonitas e sorriam imenso. O meu gigante levava-me depois para um sitio onde guardava os seus segredos. Pousava-me num pedaço de terra. Eu olhava e ficava perdido num universo de águas cristalinas, pássaros em voo, elefantes que se mimam em família, hipopótamos que abriam as suas enormes mandíbulas, leões que preguiçavam e leopardos que aninhavam as suas crias. E havia sol sempre. A noite não vinha, e os dias pareciam que ficavam em companhia. E havia um silencio que me apaixonava. Não tinha discussões, não tinha inimigos ou homens feios com sacos que me podiam raptar se não comesse a sopa. Não havia guerras nem tiros que ferem as almas. Não tinha pessoas, gente que me pudesse julgar dos disparates ou dos sonhos disparatados que eu costumava ter.

E tudo isto com uma música de David Bowie.

E outras foram chegando, Let´s Dance, Future Legend, Rebel Rebel, The Man Who Sold The World...

E chegaram duas que ainda transformaram mais este ser, ainda pequeno. Um dia, no gira-discos tocou uma de nome Life on Mars?... Começava a perceber inglês, da escola, dos filmes que ia lendo as frases que eles diziam, tentando até pronunciar o sotaque. E, como sempre, deitava-me a escutar aquela música. E sonhava. Deixava o meu corpo ir. Abandonava a terra. De novo os gigantes, o meu já mais velho, sorria sempre que me pegava como pássaro. Abria as asas de prata, tinha na boca um raio de sol e voava até outros planetas. Descobri seres magníficos, que falavam línguas estranhas, tinham olhos estranhos, comidas estranhas, mas eram engraçados. Coincidiu com a primeira vez que vi Star Wars. E dai até sonhar estar no Millenium Falcon foi um salto. Sentia-me parte da Força que dominava o universo. Saia do peito uma luz que ia além do meu voo. E trazia sempre mais um sonho, mais uma descoberta impossível de descrever por palavras. A poesia era uma mera conjugação perante a poética e incrível sensação de ver o mundo para lá do que os meus olhos alcançavam... aprendi as ver as árvores como extraterrestres que desciam pelos céus de estrelas, e em sementes cobriam a terra, germinando como seres amigos. Falava com elas, abraçava-as e brincava com elas. E davam-me um silencio maravilhoso, sem a criação de estórias estúpidas e berros que me impediam de sonhar. Imaginava as flores como o prado dos gigantes. Eles traziam de outros povos pequenas pétalas de polén e jogavam no solo, deixando-os a abrir como mel. E os pássaros. Eram os enviados do deus diferente daquele que eu aprendia na escola ou na igreja do bairro. O meu deus sempre foi especial. É meu. Falava comigo, cobria-me com um manto de estrelas, protegendo-me das sombras que vinham na noite e me assustavam. Dava-me um beijo sempre que eu, assustado na escuridão, deixava que o medo inundasse os lençóis. O meu deus abordava-me na rua, com o vento, com a luz do sol, os pássaros que cantavam na floresta e as árvores vinham com os seus galhos e me levavam para junto dos seus troncos.

E por fim chegou Space Oddity...

E por fim chegou o completar do meu Olimpo. Zeus ostentava a voz de todas as músicas que me criaram os sonhos. E todos os que o acompanhavam, uns já padeceram, outros ainda por cá caminham, sementando toda a ilusão que habita neste ser. Até a minha Afrodite. Uma menina de olho azul, cabelos loiros, que tantas vezes, ao som de Bowie, sonhei em levá-la a voar, com o meu gigante. Mostrar-lhe os recantos do meu mundo, onde todos os sonhos são a pureza da existência. Mostrar-lhe os risos de criança, as brincadeiras de um rapaz por quem a sua paixão deveria ser deslumbrada. Menina bonita, que nunca se cruzou com os meus dias. Sabia apenas o seu nome, mas nas canções de Bowie, eu despia-lhe essa palavra e escrevia-lhe o de Afrodite.

David Bowie e as suas músicas foram muito mais que canções. Foram o despertar do meu mundo, um universo onde todas as definições ensinadas são mera tinta invisível que não consegue moldar este planeta feito de sonhos, um mundo onde tudo consegue existir como algo eterno, onde o todo é apenas a definição do deus que vem sempre para nos contar uma história de encantar. Aqui não sou profeta nem estátua de recordar, mas sinto que tenho potencialidades a ser o Super Homem deste mundo que gira dentro o meu coração. Afinal as canções de Bowie mostraram-me isso, que a vida não é apenas uma mera travessia de tempo, é sim um caminho por entre a efémera passagem para o eterno e infinito céu de estrelas. E quando eu me for encontrar com Bowie, quero que Sapce Oddity seja a minha banda sonora, que as pessoas se riam e dançem, que comam e bebam às recordações que guardaram de mim, que falem bem e que falem mal, que se abraçem de tanto rirem com o que viveram e experienciaram comigo. E se chorarem, que o façam com um grande sorriso nos lábios. E que o meu corpo sejam envolvido pelo fogo e com Ashes to Ashes, volte à semente do universo o que ao universo pertence, algures numa floresta qualquer.

E ainda antes de nos deixares o teu corpo e ires ao encontro do teu Olimpo, escutei o teu novo álbum. Verdadeira e estranha sensação, aquela que senti pela manhã deste dia, ao saber que nele já te despedias, com a beleza e o encanto dessa tua forma de ver o caminho.

David, a minha gratidão é pequena perante o teu sonho. Mas o meu sonho é bem maior do que o meu coração, e as tuas canções deram-lhe asas e ele, junto do seu gigante, voou.

 

This is Major Tom to ground control

I'm stepping through the door

And I'm floating in the most peculiar way

And the stars look very different today

 

For here am I sitting in a tin can

Far above the world

Planet Earth is blue, and there's nothing I can do

 

Though I'm past 100,000 miles

I'm feeling very still

And I think my spaceship knows which way to go

Tell my wife I love her very much, she knows

 

Até breve David, num firmamento de estrelas qualquer.

publicado por opoderdapalavra às 02:01
26 de Dezembro de 2015

 

Tenho um sonho guardado.

Uma espécie de história que um dia escrevi,

sem sequer reparar nas palavras que redigi.

Dobrei folhas sem contar,

de imaginações,

viagens sem pregas ou dragões,

ou filmes de encantar.

Voei como pássaro sem asas,

em fogo aberto pelo céu coberto,

de esperanças sem destino,

ou marés despidas de caminho.

Andei como uma formiga,

palmilhando cantos num mundo,

sem o pranto de uma casa ou o fel de um coração.

Nadei como peixe sem guelras,

percorrendo todos os oceanos,

em busca de uma corrente,

daquelas que nos levam para onde o tempo acaba.

Lugar onde tudo começa.

Firmamento ao amanhecer.

Aquela bolha de ar,

forma que persiste

de conseguir sonhar.

Respirar.

E andar.

E tenho esse sonho,

algures

onde a memoria se esconde

e a lembrança adormece.

Vou busca-lo,

desenterra-lo sem olhar para trás,

sem notar,

que pelo corredor que me espanta a idade,

percorro toda a ilusão de um nome,

que dei ao sonho da minha infinidade.

 

 

publicado por opoderdapalavra às 23:00
22 de Dezembro de 2015

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E naquela manhã nenhum dos adultos acordou.

Um estranho silêncio inundou toda a região, acompanhado com um frio gélido que sobrevoou as montanhas, desceu e veio de leve, sem pegadas, por entre as árvores e arrepiou as casas. As janelas ficaram embaciadas de vergonha, as portas trancadas de medo e os telhados viraram pedras de gelo. As ruas despiram-se de luzes e o céu ficou apagado. Deixou-se de ver a lua, as estrelas, mesmo a nascer do sol ou uma qualquer nuvem que por ali se formava. 

O pequeno Ismael foi o primeiro a soltar um bafo de ar. Sentiu-se aliviado, de olhos esbugalhados e raiados de sangue, ofegando os pulmões. Um pouco assustado, revirou todo o quarto com o olhar, procurando perceber aquela sensação tão estranha. Pareceu-lhe que alguém lhe agarrara a garganta e o tentara sufocar. O pequeno conseguia imaginar um corpo estranho aproximar-se e debruçando-se sobre o seu sono, atirando duas mãos sobre o seu sopro de vida. Saltou da cama e fugiu pelo corredor que virava esquina ao quarto. Procurou os seus pais, que dormiam profundamente. Ainda os chamou, mas sem resposta, e logo desistiu. Andou mais dois quartos e irrompeu pelo da irmã, Aldoina. Esta encontrava-se sentada na cama, com a mesma imagem de susto estampada no rosto. 

  • Sentiste?
  • O quê?
  • Aquelas mãos a não deixarem que respirasses?
  • Sim. 
  • Quem achas que foi?
  • Não sei. Mas tenho medo.
  • Calma. Está tudo bem, os pais ainda dormem, logo é porque deve ter sido um sonho apenas.
  • Já é dia. Achas que ele já passou por aqui?
  • Talvez. Vamos ver?

E numa explosão de corrida, desceram e logo se defrontaram com o inimaginável. A árvore de Natal, o presépio, todas as decorações de Natal desapareceram. Não havia prendas nas meias, porque as meias não estavam na lareira. Não havia estrelas no tecto, porque elas foram levadas. Não havia nada, apenas um enorme buraco na parede. Saíram à rua, encoberta por um manto de neve ainda fresca e repararam que todas as casas tinham um enorme buraco, igual ao deles. E várias eram já as crianças que deambulavam pelas ruas, perdidas nas passadas, procurando e buscando por uma razão obvia para tal assombração. E todos os adultos continuavam a dormir profundamente. Os pequenos chamavam por eles e estes não respondiam, nem mesmo um qualquer ruído para dar em resposta. Apenas os sons naturais de quem dorme. 

Um dos pequenos que rondava as ruas, acercou-se deles,

  • Já tem explicação?
  • Não, e vocês?
  • Só me lembro de acordar sufocado.

Aquela sensação começava a tornar-se um remoinho de pensamentos na cabeça de Ismael. Começou a relacionar aquele aperto ao desaparecimento de tudo o que derivava do Natal. Voltou a casa e olhou bem para o buraco. Queria encontrar uma pista, uma indicação que o orientasse. Depois subiu ao quarto, ainda a tempo de verificar que os seus pais mantinham-se deitados, e parou na sua cama. Removeu os cobertores e os lençóis. Mexeu e remexeu. A sua irmã estava nas suas costas,

  • O que procuras Ismael?
  • Não sei. Mas algo. A sugestão daquele estranho ser que me veio agarrar está relacionada com o que aconteceu ao… - e na surpresa do momento, começou a sentir um esquecimento súbito, um aperto no peito, um suor nas mãos, uma vontade de querer falar e não conseguir produzir palavras. Olhou a irmã e esta estava quieta, olhando-o sem mover um pequeno retoque do seu corpo. - Porque é que eu quero lembrar-me do que ia a dizer e não consigo?
  • Não sei. Porque estamos aqui Ismael?

Saiu em corrida pela casa, sem notar que os pais continuavam a dormir, e deixando a irmã nas costas. Na rua observou atento todas as outras crianças. Estavam perdidas. Umas chamavam pelos pais, outras tremiam de frio e algumas brincavam com a neve. Aproximou-se de uma delas,

  • O que fazes aqui?
  • Não sei. Acordei e vim para a rua. Reparei que tenho um enorme buraco na sala e os meus pais estão a dormir.

Ismael resolveu correr sem parar. De chinelos, roupão e um gorro que lhe chegava aos ombros. Circundou o bairro, quarteirões, até chegar à cidade. Em todo o lado encontrou sempre o mesmo. Buracos nas casas, crianças na rua com diferentes disposições e sentimentos, e nada de adultos. Apenas neve e muito frio. Aliás este estava cada vez mais forte. A brisa não se sentia ao corrente mas entrava nos corpos com toda a força. Chegado ao centro da cidade, baixou-se de cansaço perto de uma estranha estatua de bronze. Encostou-se, tentando recuperar algum ar ainda disponível para lhe renovar a respiração. Agarrou-se ao seu corpo e foi ficando coberto de uma sensação de impotência. Queria perceber, mas cada vez mais havia um esquecimento impulsivo a correr nas suas veias. Queria recordar mas as memórias bloqueavam-se a cada segundo. E começou a tremer de tal forma que o seu corpo defendeu-se e caiu redondo no chão. 

  • Ismael.
  • Sim, quem fala?
  • Sou eu, a tua mulher. Quem havia de ser? Acorda que já são horas. Os miúdos já abriram as prendas. E os teus pais devem estar a chegar. A tua irmã é que ainda está também a dormir. Estranho, deve ser de família, pois o Luis já se levantou. 
  • Estranho.
  • O quê?
  • Tive um sonho assustador. Que dia é hoje?
  • Que dia é hoje Ismael? Que pergunta. É Natal.
  • Natal?
  • Porquê essa estranheza? Raios Ismael, estás-me a assustar. O que se passa?
  • Não sei. Lembro-me de acordar sem ar, de encontrar um enorme buraco na sala, os meus pais que não acordavam, crianças na rua e cair de frio no centro da cidade. Mas não me recordo de mais nada, nem do porquê do buraco na sala.
  • Vá foi só um sonho. Levanta-te.

Saiu. Ismael ficou sentado na cama. E enquanto removia as mãos de dentro dos lençóis, um pedaço de papel veio agarrado a uma delas. Era uma carta. 

“Querido Ismael,

Naquela manhã nenhum adulto acordou. Ficaram todos assustados. O Natal parecia ter desaparecido. Todos as fantasias, presépios, musicas e prendas tinham desaparecido. Assim como as memórias ao Natal dos brinquedos, o Natal das ilusões de um senhor de vermelho que desce pelas chaminés, um Natal de imaginações com os desejos a explodirem. As lembranças esconderam-se. E naquela manhã todos ficaram assustados. Porque todos deixaram de ser adultos de novo, e adormecidos nos seus casulos, fechados nas suas capsulas de egos, viraram crianças sem memórias do Natal. Viraram apenas pequenos rapazes e raparigas sem um sonho, sem um conto para recordarem um dia e entregarem em legado aos seus vindouros. 

Naquela manhã todos os adultos ficaram perdidos. Porque afinal o que é essa memória de nome Natal? Porque afinal o que é essa palavra que tanto parece querer dizer e tanto fica por dizer? Porque afinal o que é esse sentimento que tantos mundos abraça e mesmo assim parece serem sempre poucos os que são abraçados?

Naquela manhã, enquanto todos os adultos continuarem a querer acordar, haverá sempre uma criança que se deixa dormir, mais uma vez. Naquela manhã sempre que houver um adulto que resolva pensar que uma prenda apenas significará o valor da palavra, haverá uma memória  mais que se apagará. Enquanto houver uma família de adultos que achem que o seus orgulhos são mais poderosos que os braços dos restantes, haverá sempre uma luz que ficará perdida na escuridão. 

Ismael, apertei-te o ar que respiravas para acordares a criança que está dentro de ti. Deixei-te ao frio para esfriar a demasia de adulto que tens dentro de ti. Roubei-te os símbolos de Natal para despertar a magia deste sentimento que está adormecido dentro de ti. E apaguei-te a memória para poderes perceber que tudo o que não viveres com o coração será apagado do pensamento.

Sim, é dia de Natal Ismael. E estás vivo.

E se aquela manhã de facto todos os adultos ficassem a dormir? O que achas que aconteceria agora?

Bom Natal,

Assinado: Ismael.”

publicado por opoderdapalavra às 11:04
15 de Dezembro de 2015

 

 

Sentado

Simplesmente sentado, sem ter um objectivo, uma razão de estar ali

Sentado, de pernas em riste, de braços fechados

Olhos sem ver e escuta sem ruído

Voz deitada no silencio

Sentado ali, sem que nada fosse uma mera circunstância

De corpo duro e pensamento mole

Enfraquecido pela cascata de imagens

Filmes que se constroem em sucessões de frames

Sequencias de firmamento que levam o espírito

E de coração assim, longe de tudo

Fico sentado

Ali, naquele lugar

Como se fosse o ultimo, como se fosse a merda de um grito

De uma revolta, de uma puta de vida sem sentido

De uma fúria que não sai deste peito que pede para explodir

E ali

Sentado, fodas, como posso estar assim?

Só sentado é que não vejo

Não revejo o passado, nem observo o futuro

Sentado nem o presente me fica aos pés

Mas sentado sei que morro

E a mente leva-me ao buraco

Aquele túnel sem saída, sem caras, faces, lábios ou olhos

Apenas fantasmas que vem e vão mas ficam sem pedir

E ali fico sentado

Esperando não sei o quê

Talvez aquela dor que nunca se sabe se dói

Ou aquela frustração que não sai

Entrou como seta e ficou por ali a sangrar

E assim espero sentado

Que a história possa escrever outra vez este nome que até esqueci

E todos já nem sabem que eu estou aqui

Sentado.

Não

Não

Não

Quantas vezes tenho de dizer que de sentado estou farto

E daqui desamarro aquelas cordas que deixaste

E liberto todas as correntes que ataste

Já não sou teu servo

Nem mesmo um mero criado dos teus devaneios

Sou apenas uma fracção de existência

Mas mesmo que um segundo que seja, sou tempo e sou parte

Ínfima migalha de tudo

E tu, mera recordação

De um corpo sentado

Esperando aquilo que não se espera

Sem que antes

Se consiga dizer que não

À vida sentada.

A ti,

Que não passas de uma mescla de pensamentos

Deixo-te ir

Algures

Do meu sentimento

Que não se ressente do que me fizeste

Porque fui eu quem te deixou entrar

E abraçei-te ali, naquela cadeira

Onde um dia pensei estar sentado

E agora

É apenas o principio de saber dizer que não

Não quero estar sentado,

Antes caminhante do que reles pobre na cadeira.

 

publicado por opoderdapalavra às 21:35
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