podes pensar, podes falar, mas tudo o que escrevas tem o poder de ficar.
07 de Dezembro de 2014

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Mais 3 textos...Traicões.

 

  1. Filipe chega sempre a casa no momento em que o cuco do velho de relógio de parede, prenda do avô, vem cantar as 21 horas. Um quase perfecionismo pelos hábitos diários que inunda o quotidiano deste simples recepcionista de Hotel.

Mas naquele dia, o cuco não se atrasou nas 21, e Filipe abriu a porta ainda antes dos ponteiros formarem um ângulo recto. Na sala, Rui, o seu melhor amigo aconchegava o corpo de Rita, mulher há uns dez anos do simples recepcionista. O instante em que os olhos de Filipe absorveram a imagem que o sofá vermelho sustinha, fê-lo empilhar pensamentos em série. O seu cérebro parecia uma máquina calculadora a construir uma soma: Rui + abraço + Rita = caso. Houve mesmo um raiar de sangue nos capilares oculares de Filipe.

Do lado do melhor amigo, veio um cliché de expressão “não é o que te parece”, o que ainda valorizou mais a matemática do marido.

  • Porquê os teus braços no corpo da minha mulher? – questionou Filipe
  • Não te precipites nos julgamentos – Rui encontrava-se já de pé, com os nervos a tremerem-lhe nos lábios.
  • Eu só estava a lamentar-me que o nosso casamento continua perdido num poço de simplicidade, sem paixão, e – Rita deixou que o silencio pudesse ajuda-la a perceber porque é que minutos antes Rui a tentara beijar, mas sentia que tinha de dar uma explicação ao seu marido. Algo que ela própria não tinha.
  • Eu estou apaixonado pela tua mulher Filipe. Fodas, não posso esconder mais. – e saiu numa corrida desenfreada, jogando o melhor amigo no chão, e parando apenas na porta do seu carro, estacionado uns metros abaixo da casa de Filipe.

Rita deixou-se sentada no omisso que promoveu. Filipe ficou estendido no chão, olhando o tecto da sala. Os olhos agora estavam lavados, por lágrimas. Sentia o aperto em que o peito se contorcia. A cor do tecto é pérola. Não se recordava já que era essa a cor. Como não se recordava do ultimo beijo em que sentira paixão, um batimento cardíaco que quase abre todo o corpo, um tremer de pernas que faz sentir desfalecer nos sentimentos de alguém. Não se lembra dos tempos de namoro, de esconder-se para conseguir abraçar apenas a mulher que sentia amar. As recordações ficaram fechadas na simplicidade das rotinas diárias.

E o cuco veio cantar. 21 horas. O mesmo barulho que rompe sempre o mesmo silencio, o da relação que ficou parada numa estação algures no comboio do tempo passado.

 

 

 

  1. Quando se descobre que aquele a quem se clama por melhor amigo, tenta beijar à força a nossa mulher, descobre-se uma chama de raiva e angustia dentro do nosso ser. Foi o que Filipe sentiu quando se deparou com toda a cena, no corredor de casa, quando davam uma festa para amigos. Jogou-se no corpo do amigo e amassou-o com todas as forças que sentia deter. Parecia um qualquer animal indomável a desferir toda a sua raiva na presa que ficava cada vez mais inválida, jorrando sangue por todos os poros. E foram rodeados, rapidamente, por todos os outros que estavam presentes na casa. Formou-se uma espécie de arena romana, onde o gladiador aplicava golpe atrás de golpe no já frágil cadáver da vitima, do prisioneiro que pagava pelos seus pecados. O momento era acompanhado pelos gritos desenfreados e assustados de quem temia o pior dos fins, mas também pelos incentivos daqueles que ajuizavam e sentiam o mesmo apego à vingança. O chão do corredor transformou-se num rio de sangue. Filipe tinha naquele momento uma faca na mão, e não se rogou em usá-la. A mulher puxava-o para trás, com todas as forças que tinha,
  • Filipe, deixa-o, não estragues a nossa vida por causa dele... - Mas os seus ouvidos estavam fechados. Ele viu. Ele observou tudo. Ele quase sentiu a vibração da traição nas veias. Tinha de o despedaçar. Tanta confiança, construída através dos anos, para isto? É para isto que depositamos nas mãos de alguém o titulo de “melhor amigo”? Não. Rui assim que reparou em Filipe, afastou-se de Rita. Sentiu a vergonha inundá-lo. Sentia-se encurralado num beco. E sentia-se alcoolizado. Fora dominado por um sopro de impulsividade, atirando-se assim à mulher do melhor amigo. E Filipe, já conduzido pela embriaguez, despertou da sua imaginação. Pode não ser fácil deparar-se com o que viu, mas os pensamentos em que mergulhou eram funestos e famintos de uma personalidade que não se enquadra com ele. Agarrou-se à mulher e beijou-a intensamente. Rui afastou-se. Sabia que tudo acabara assim. O todo engano morria ali. Na paixão intensa de um beijo.

 

 

 

  1. Filipe e Rui saiam sempre às sextas. Era comum. Como o comum de os dois melhores amigos se encontrarem e despertarem para uma noite onde tudo era esquecido. Os problemas, as zangas, os desânimos, o desapego pela angustia. Ali só tinha lugar a paixão pelo beber, pelo rir em gargalhadas profundas, e golfadas de conversas que desviavam as atenções do que os preocupava. Era como um jogo noturno onde tudo, ou quase tudo, seria permitido.

Mas naquela noite, os shots, as travessuras com comprimidos alucinantes, e um ambiente onde os pensamentos ficavam entregues à inconsciência, eles estavam perdidos numa viagem quase tridimensional. Chegaram ao ponto onde velhos desejos veem à tona do copo.

  • Sabes o que me apetecia mesmo? – gritava Filipe no ouvido do amigo, que se ria sem que a piada existisse nas palavras. Os dois cambaleavam por entre as inúmeras pessoas da discoteca.
  • Ainda não me disseste meu – não conseguia parar de rir, rindo-se mesmo de si mesmo, do seu andar, da forma como andava de um lado para o outro, tipo barco almareado por forte ondulação.
  • Sempre tive um fetiche maluco. Sempre pensei ver alguém a roubar um beijo à minha mulher.
  • Meu, mas que raio de doideira é essa? Só um beijo? Se fosse ainda uma cama e uma ménage...- e continuava a rir-se.
  • Não, a minha vontade era de ver se a puta gostava. – e começava a formar-se um ar muito sério nas feições de Filipe.
  • Estás a chamar puta à tua mulher, meu – e quase se deitou no chão a rir-se.
  • Sim, e não é o que elas todas são? Umas putas? – Filipe deixava sair fantasmas que assolaram relacionamentos antigos. Traições, desapontamentos nas primeiras tentativas de sexualidade, e um baú de travessuras que sofrera sempre que dizia a uma miúda que gostava dela. – Tu podes-me ajudar Rui.
  • Eu? – o seu riso só era interrompido pelas palavras. – Como?
  • Tentando beijar a minha mulher e eu a ver. – Agora o riso parou. Finalmente parou. Mesmo com drogas, álcool e muita estupidez, Rui conseguiu ter um afrontamento de lucidez. Fixou o olhar na expressão do amigo. Este estava estranho e observava-o com um sorriso maroto. Agora era Filipe quem se ria, quem deixava sair um certo sarcasmo no sorriso. Os fantasmas dominavam-no, mas não só, a verdade também.
  • Como soubeste? – Rui estava agora com um ar assustado.
  • Achas que ninguém teria visto?
  • Quem foi?
  • Eu claro. – e puxou-o pelo casaco e encostou-se à sua face – estava atrás da porta e assisti a tudo. Nem ela deu conta. A puta.
  • Mas ela fugiu, não a trates assim.
  • Porque? Já te disse, são todas umas putas – e afastou-se e foi dançando pela multidão desaparecendo de Rui. Este deixou-se cair, entre milhares de pernas que dançavam. A amizade ficou ali, perdida no álcool, nas drogas e num beijo que nunca aconteceu, mas foi tentado.

 

publicado por opoderdapalavra às 23:08

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