podes pensar, podes falar, mas tudo o que escrevas tem o poder de ficar.
26 de Novembro de 2015

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10 anos depois... 

 

 

"Naquele dia tudo parou.

Parou o sol, ali junto ao fio de linha que traça o horizonte. Pararam as nuvens, encavalitadas umas nas outras. Parou o vento, com as arvores dobradas. Pararam as abelhas, coladas ao ventre das flores. Pararam os relógios, com os ponteiros colados. Pararam as pessoas, fechadas nas suas casas. 

Naquele dia apenas ficou o som do rosário de Nossa Senhora, pendurado sob o alpendre do retrovisor. O radio apagou-se no silencio. Naquele dia ficou apenas o corpo de Lisandro, estendido  no banco corrido da frente. Abraçado nos próprios braços, retinha a força das lágrimas e a voz da angustia. Olhos bem fechados, quase a esmagarem as retinas. Peito recolhido e as pernas dobradas em duas partes. 

Aquele dia esvaziou-se de tempo. Mas até aquele dia tem um passado, uma historia por contar. E aquele presente terá um futuro, palavras a escrever. (...)"

 

 

publicado por opoderdapalavra às 21:55
25 de Novembro de 2015

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Pego na mochila e saio. Não se sai assim de leve, sem dizer nada, sem deixar uma memória. Primeiro arrumam-se os momentos, depois limpa-se os ressentimentos, para que as dores possam ficar guardadas. E a seguir as palavras. Pegam-se nas desculpas, nos perdões tardios ou não, nas consciências mais ou menos pesadas, e metem-se nas palavras. Fazem-se frases, construindo discursos repetitivos, mas sempre bem definidos. E remata-se sempre com um sorriso. E com um abraço quando ainda se tem tempo. Mas não muito longo, pois o demasiado afecto pode fazer regressar o passado. E esse tem de ficar bem fechado. Como um fantasma que ensombra os dias e as noites, deixando, assim de ser, o sabor amargo do enclausurado. É assim que se sai. E foi assim que sai. De mochila. Com poucas coisas amontoadas. Apenas umas camisolas, umas cuecas, alguns pedaços de utensílios pessoais, umas botas de troca e duas calças de reserva. Ah, claro, acrescentei ainda o livro e o bloco de notas. O livro fala de um amor. Vadio, sem dono, meio assustado. Um amor de quem espera pelo beijo esquecido, de quem resenha entre dentes a vontade de um corpo malandro, daqueles com que se fode, como se da última se falasse. Homem com mulher. Mulher com homem. Outro homem. Outra mulher. Mais mulheres e menos homens. Mais expectativas quanto ao amor de uma mulher, menos promessas quanto ao amor de outro homem. É assim que se cruzam as páginas do livro. E no fim, parece que tudo termina bem. Com beijos. Com cama. Com sonhos e futuros prometidos. E tudo fica ali, naquela última frase " nunca haverá outro dia como aquele, em que o amor venceu." Como se fosse uma corrida, onde o primeiro seria premiado com o tal sentimento nobre. E depois as notas. A caneta. Vou escrevendo o que me vem à ideia. Nada de especial. Apenas os passos que vou dando, os pensamentos que parecem brutos umas vezes e mais dóceis noutras. Mas nunca deixam de ser pensamentos. Apesar de quando querem apertar o peito, fazem-no como se uma mão entrasse pelas costelas e fosse às entranhas esvaziar todo o seu conteúdo. Escrevo também o que vejo. Caminhos, estradas, ruas. E há as montanhas, as descidas e os desníveis. E há as pontes, às margens que se ligam e à margem de quem se liga ou desliga. Aí, olho sempre a corrente. Nunca passa a mesma vez por debaixo daquela travessia. E vai, no seu percurso, sem notar se ali estou, contemplando-a. Anoto a comida. O pão quente, as carcaças mal cozidas, o queijo fundido na tosta, a carne que fora mal passada e o peixe por amanhar. O vinho que sabe a rolha, a água a pedra e a sede que não se mata. As conversas de fim de dia, as vozes no início da tarde, os silêncios pela manhã. Escrevo sobre as várias vezes em que comi sozinho. Apenas eu e a mesa. E mais uns bancos vazios. Prato cheio, copo por meio, e sem diálogos. Qual livro de desenhos com balões sem palavras. Quando durmo, fico de olhos abertos. Dormir assim é não esquecer que a seguir ainda se pode acordar. É assegurar que não se fica ali, no sono profundo, perdido entre quem se deita e nunca se levanta. São muitas as casas onde durmo assim. Ouvindo a noite. Escutando o que ela diz. O matreiro do mocho que fisga a presa, o grilo que não se cala, e o pirilampo que não se desliga. E falam as estrelas também, e o vento que sopra antes de amanhecer, ou a vergonha da penumbra que humedece os campos. E durmo em casas de gente que não se deita, de gente que me olha por estranho, que me troca por um pedaço de moedas que tilintam nas mãos. Gente que mostra os seus aposentos, que me deita em palheiros ou no chão de madeira. E sempre chega o dia. Um banho pela mangueira, roupa lavada na banheira e os perfumes das flores. Raso na pele pétalas que me embebedam de odor. E depois o café. Cheiro matinal. E assim saio de novo. Depois de tudo arrumado, deixa-se a memória, de mochila nas costas, e olhar na frente da passada, saio e vou embora. Até chegar. Nesse dia poderei, enfim, descansar.

publicado por opoderdapalavra às 13:37
23 de Novembro de 2015

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Sou. Ser apenas não chega quando se chega aonde se é lugar guardado local fechado. Ser é como padecer enterrar os pensamentos laivos de loucura que nos abandonam para outros entrarem convidados do corpo que se é. Sou. Ali, onde nunca fui só consegui ver de longe como quem avista terra perdido no naufrágio dos dias. E agora que sou? Não interessa o defeito, feito de imperfeito. Não interessa a palavra a mesma que vinha com o sangue dos outros. Não interessa o vento que soprava da ferida passada. Ser é ir, onde a voz se cala, onde o pensamento ficou na porta de entrada, onde o sentir deixou de se sentir. Ali onde sou apenas Quem apenas sou. Mesmo que não chegue. Será sempre o princípio, de ser quem um dia sempre fui. Sou. Onde sempre fui.

publicado por opoderdapalavra às 11:10
09 de Novembro de 2015

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A cidade.

O rio.

O barco que chega sem avisar, o sol que abranda sem se notar, o vento que vai sem se apontar.

A ponte que atravessa, faminta de cor, perdida na imensidão de quem desespera.

As pessoas que se aglutinam, como moscas tontas, nos batelões que rasgam as águas reviradas.

As ruas que se deixam foder de lixo. As casas já fodidas pelo descarnar do abandono. As janelas que escondem olhares matreiros e ausentes. Os cafés que se deixam emergir em conversas de silêncios. O vinho que vem à mesa, o café que abraça lábios, a cerveja que refresca a garganta. Os pregões da ribeira, os berros dos ciganos que vendem almas ao ouvido dos descrentes. Peles que sarapintam multidões, do branco com o preto, amarelo, escuro e claro, casados com cabelos que se multiplicam em arco-iris de norte.

E a história que dormiu com as estórias e na pornografia das palavras, sucumbiram na imaginação dos que por ali já perderam o nome, a idade e sabe-se lá mais. A comida que já nem se sabe onde nasceu, as lojas que deixam entrar qualquer um, mas só alguns sabem como saem. As línguas que já nem tem casa, os risos que deixaram de ser presentes para serem obrigados. As lágrimas de quem ouve o fado, o brilho daqueles que olham o Jerónimos, ou a azafama de quem sobe a Bica.

Os passeios foram feitos para os carros e o asfalto para as pegadas dos peões. O ar já nem se respira, e a respiração é domada pelos adornos dos aviões.

A cidade.

O bairro. Os bairros. As canções que recortam a voz dos pátios, a sardinha que estala no carvão, o copo meio cheio ou meio vazio. O bar que não fecha e aquele que se fecha a alguns. Os corpos dos meninos que se beijam, os beijos dos rapazes que se amam. As mãos dos homens que acenam às miúdas que sobem até ao Principe Real. As mulheres que se mostram no Intendente, e os laivos de sexo que se escondem por trás das portas da baixa.

A nata que se come na Belém dos Descobrimentos. Os jardins dos verdes amarelos. Os bancos rendidos aos que esperam a morte. A Torre que espera o nevoeiro da madrugada. A doca que troca olhares com o Cristo que espera que a cidade se decida.

Há cheiro a castanha, a sovaco de fim de dia, a perfume requentado, a roupa fresca nas varandas, a estações que deixam de o ser pela Madragoa. O Panteão que guarda quem se esqueceu que haja existido, aperfilhando aqueles que de nome são heróis, de passado meras circunstâncias de noticia.

Os barcos continuam a chegar. Aos que partem dizem obrigado e aos que ainda nem se avista, reza-se que rapidamente entrem pelo rio e acabem com as saudades. Essa saudade na letra de Alfama, por quem se contam as escadas e degraus submersos entre corredores de casas idosas.

O sol vem abraçado a um céu que não chega ao engano. A luz é arrebatadora e quem a vê sabe-o.

A cidade.

E assim adormece no sono de quem não dorme.

 

publicado por opoderdapalavra às 17:11
04 de Novembro de 2015

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A janela. Aquele pedaço que transgride a enorme parede que a sustenta, buraco que traz luz, que se abre aos sabores de uma imensidão. Ela está ali, bem junto a mim. Os meus dedos tocam levemente o vidro. Sente-se o vapor que a minha respiração vomita em toda a sua estrutura. E fico ali por uns segundos. Sem mexer um músculo. Apenas olhando e formando pensamentos.

Viro-me e deixo-a nas costas. Sento-me. A secretaria espera por mim. Chego-me a ela e pego na caneta. O papel há muito que me aguardava. E escrevo. Como se fosse sempre a ultima vez,

“Não sei como se redige uma ultima carta. Não que seja a ultima de dizer adeus, mas será sempre a ultima antes da próxima. Se houver essa próxima.

Nunca soube, nestes anos, como se escreve de facto a palavra amor. Foram tantos os poemas, as vezes que cantei versos de paixão, de formas em que me entregava, de palavras que sempre descreveram o que me ia no foro mais intimo do peito. Foram tantas as horas em que pensei, letra a letra, em te dizer. Mas em todas, agora que as olho, foram pequenas partes do todo. Nunca consegui expressar-te a explosão que habita em mim.

Pensava que podia dizer-te assim, em frases bonitas e que brilhavam nos teus olhos, que o amor era um percurso de sensações e sentimentos arrastados pelos lábios que se uniam, pelas ideias que se casavam, pelas horas em que sorriamos. Que o amor era preenchido pelos corpos que se abraçavam, pelas vezes em que entrava em ti e tu me recebias com o fogo ardendo na pele.

Que tinha presentes escondidos e ladeados por postais onde te dizia o que pensava ser tudo.

Mas afinal, agora que não estás, que não te vejo, que não te ouço, que não te toco, que não te beijo, que não escuto o teu silencio, que não posso deitar-me olhando apenas como as pálpebras acolhem o teu olhar, que não posso sentar-me apenas para que me contes as tuas fúrias, que não posso descobrir as tuas surpresas, que não posso descobrir os teus pensamentos, que não consigo observar os teus movimentos. Agora que não habito em ti, dentro desse ser tão único, que não retiro o teu nome dos meus dias, ou mesmo não abandono todos os teus hábitos pelas noites e noites em que me deixo ficar pelas insónias da saudade.

Agora que já não és parte das minhas horas, percebo afinal que nunca soube te dizer de facto todo o significado do amor que está aqui, dentro deste pequeno pedaço de músculo que bate e bate, a cada badalada de tempo que soletra o tempo em que já não estás aqui. Mas também contou todo aquele em que estiveste. Logo desde que ele se apaixonou por ti, ele tem pautado todo o firmamento da palavra que se escreve tanto e dela pouco, de facto, se diz. Porque dizer mesmo dela é quase um impossível. Como se consegue desenhar neste pedaço de papel todas as emoções que sentia quando chegavas perto de mim. Quando eu passava na leveza de um momento, estes razos lábios naqueles que de tão doceis que eram, traziam-me o paladar da pureza.

Quando eu tinha a fortuna de colocar-te os dedos nas tuas faces risonhas, e deixava que a contagem dos anos ficasse perdida algures no infinito.

Quando eu guardava as memorias dos momentos em que viajávamos, falando do nada, e ainda assim o nada era tanto que preenchia todo um universo de conversas.

Quando liamos textos um ao outro, procurando dizer que sentíamos que o outro era tão importante para nós, que tínhamos de partilhar tudo o que sonhávamos.

Quando éramos pequenas crianças, brincando pelas ruas, pelas praias, pelas praças, pelas cidades, pelos campos, pelos países, pela casa.

Quando fomos amantes, jogávamos a sensualidade nos dados do desejo. Dançávamos corpos famintos de deitarmo-nos, sós a dois, na cama de uma vontade de beijar toda a intimidade, todas as formas que contornam a nossa existência, e estarmos ali, perdidos do mundo, esquecidos que lá fora existia tanta gente bradando por nós. Queríamos e tínhamos. Um ao outro.

Agora percebo como se escreve essa palavra. Ela só sabe aparecer nas frases, quando a memoria arrasa o relógio da nossa ausência. Sabes, agora não consigo encontrar um defeito em ti. Não consigo lembrar das nossas discussões, não consigo encontrar as nossas contrariedades, nem mesmo o que nos separava. Agora só vejo tudo o que de maravilhoso aconteceu connosco. Mesmo os momentos menos bons foram óptimos. Porque aprendemos um com o outro, descobrimos que podemos crescer juntos, caminhar junto, lado a lado pela estrada fora. Descobri qua final amar não é procurar diferenças, mas sim aceitar as diferenças. Que o amor não é esperar mudanças, mas mostrar mudanças. Agora sei que amor não é entregar o meu nome nas tuas mãos e vice versa, mas partilharmos as nossas identidades. Agora sei que amor não é abandonar um rumo, mas sim definir um rumo.

Agora sei o que o amor de facto representa. E fico aqui. De costas para o mundo. E penso. Porque só agora sei isso? Porque é que só consigo descobrir o que é a palavra amor, agora?

Talvez porque já não estás aqui. Mas onde quer que estejas, algures, quero que saibas que não guardei as tuas fotos, os teus presentes, o teu lugar na cama, as tuas roupas, os teus livros, as tuas lembranças. Não guardei nada disso.

Preferi guardar algo melhor. O teu sorriso. Os teus olhares. Os teus beijos. A tua intimidade. O teu toque. O teu cheiro. Os teus cabelos. As tuas formas. O teu nome.

Sim, amar-te é isto. Deixar-te ir, no teu caminho, mas ficar com o teu nome guardado neste cofre onde apenas coloco aquilo que me faz andar.

Guardei este amor que sinto por ti.

 

E volto à janela. Ali estava ela, sem se mexer. Na secretaria ficou aquele pedaço de papel, escrito, rasurado com aquele nome. E abro as portadas e deixo o vento entrar. E fico ali. Sentido, de olhos fechados, todo o mundo que ela habita. E sentindo um odor igual à pele que a protege. E sorrio.

E no vazio da sala fica apenas uma leve esperança de um papel que voa e de um corpo que parte. E a janela, aberta, abre-se a um novo dia. Talvez a um novo amor, ou ao regresso do anterior.

publicado por opoderdapalavra às 18:16
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