podes pensar, podes falar, mas tudo o que escrevas tem o poder de ficar.
30 de Março de 2015

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Menina de vestido em roxo, caminhava por entre as árvores, procurando-o entre um jogo de escondidas, nas sombras do anoitecer. Lá longe, o mar continuava o céu e o sol dividia-se entre os dois. As cores tinham sinais de que uma névoa entraria pela madrugada. Traria o vento dos segredos, e nele as vozes apagar-se-iam como silêncios, para darem lugar ao sussurrar da manhã. Pássaros a chilrear, ovelhas que badalam nos campos de verdes curtumes, e as árvores que falam a conversa das folhas.

Por isso a menina precisa de correr. Contara os cem números de espera, e soltou-se em passadas apressadas, buscando-o com um olhar atento. As mãos pareciam afastar os troncos, sempre na certeza que por detrás de um deles lá estaria ele, sorrindo-lhe como um pequeno boneco. Mas nunca surgia. Nem mesmo no meio da plantação de arbustos que separavam as dunas da estrada. Parece que ele fugira. Ele deixou cair o vestido roxo sobre as areias. Os seus cabelos de misturas ruivas ficaram a dançar no ar, soltos e abraçados, no vento que afinal chegara mais cedo. A pele transparente deixou de o ser e começou a ficar lavada em pequenas lágrimas. Tão pequenas que nem se seguravam nas sardas catraias. Gritou pelo seu nome ao silencio. Ele não lhe respondeu.

Por entre as horas que deixaram entrar o escuro da noite, ela regressou a casa. As árvores tornaram-se espectros que quase a abraçavam com os seus desenhos no sombrio caminho. Mas ela mantinha-se fechada dentro do seu pensamento. Onde estará ele? Prometeu que brincaria comigo e fugiu. Chegada a casa, trocou o vestido e deixou cair no corpo o pijama de um rosa fúchsia. Sentou-se na cama e abriu uma pequena caixa de música. Rodou a corda e a pequena boneca começou a dançar. De braços em riste, pernas esticadas e pés em bico. Rodava no mesmo sentido, acompanhando sempre o ritmo que aquela pequena caixa deixava sair do seu fundo. Ela voltou às lágrimas. Voltou às perguntas. Voltou a não perceber onde estaria ele.

Foi quando um bater forte esbateu-se no vidro da janela. Fora tão possante que lhe deixou o coração em pulos e pulos, tantos que parecia sair-lhe do peito. Sofrenou alguns segundos as rédeas daquele pular e jogou-se à janela. Lá fora, na primeira vista, não surgia nada, mantinha-se apenas a mesma escuridão. Voltou costas, de volta à cama, e de novo um mesmo pulo no coração. Mais um forte bater no vidro, como quem bate por quem chama. E ela perguntou quem chama por si?

Sou eu. A voz fora um pouco estranha de inicio, sem se aperceber quem estaria ali a assustar o seu pequeno coração de criança. Mas depois de um novo bater, e de novo um Sou eu mais expressivo e perceptível, ela soltou-se em sorrisos e correu a abrir a janela. Era ele.

Onde estiveste? Procurei por ti em toda a parte.

Fui ver o mar e perdi-me nas ondas. São tão bonitas. Nunca me tinhas dito que elas se levantam e descem de seguida, como que dançam, parecendo a menina da tua caixa. E as aves que rasam o corpo das ondas? É lindo. Cheguei mesmo a gritar de medo, vendo as asas tocarem-nas no pique de um voo. Porque nunca me mostraste as ondas e o mar? É imenso. Andei e andei e nunca lhe encontrei o fim. A noite chegou e ele ficou na cor de prata, e com o cheiro do vento. Foi quando voltei, mas não conseguia encontrar o caminho. Olhei o céu e a lua ajudou-me, e trouxe-me por um abraço. Já não estavas onde começamos a jogar. Então pensei que estarias aqui.

E eu pensava que tinhas fugido de mim. Pensei que te tinha perdido para sempre.

Como?

Não sei. Abri a menina que dança e já não tinha a mesma música. Nem parecia dançar da mesma maneira. Nem as cores de rosa, do fúchsia eram os mesmos. Sem ti, nada é o mesmo. Mas estou contente de teres voltado. Desculpa nunca te ter mostrado o mar.

E abraçou-o. Ficaram os dois ali no canto do quarto. E foi ali que ambos adormeceram.

No dia seguinte ela levou-o de novo até à praia. O mar vinha meio tímido tocar-lhe os pés. Virou os olhos para ele e num sorriso tão enternecedor, disse-lhe para ir ver o fim do mar. Ele foi, e ela de novo de vestido em roxo, sentou-se com a espuma das ondas. Ao longe as gaivotas raspavam as ondas, as nuvens colavam-se ao azul do céu, o sol rompia-as e o seu sonho voava alegremente, como uma pequena criança que brinca aos salpicos.

Ainda hoje ela volta. Os anos já a separam muito desse momento, mas regressa para nunca o perder de vista. Agora traz uma pequena criança. Conta-lhe por onde ele voa e onde brinca com as ondas. Ele sorri, e conta-lhe que o seu tem uma capa de herói e vem onde as estrelas nascem. Os dois sentam-se, felizes, olhando-os com o tom tenro de quem nunca se esquece que afinal para se dançar a felicidade, é preciso saber voar o sonho da música.

E ela vem sempre de vestido em rosa fúchsia.

 

publicado por opoderdapalavra às 19:34
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